Hoje, 21 de março é o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, pela Lei n° 11.645. A Organização das Nações Unidas (ONU) proclamou, em 1966, a data em memória ao massacre de Shapeville, em Johanesburg, na África do Sul, em 1960. Frente a isso, Barbara Ferrito, juíza do trabalho no TRT/1R, resgata a pergunta que a ativista norte-americana Sojourner Truth fez em 1851 para falar sobre a imagem da mulher negra no Judiciário.
Bárbara Ferrito para a Gênero e Número
Sendo uma mulher preta, eu constantemente me vejo tentando compensar a minha raça, como se ela fosse algum demérito meu. Desde o tempo da escola, quando eu fazia questão de ser a melhor da turma, a mais gente boa, a mais agradável! Não era porque eu me achava inteligente, engraçada e simpática. Eu já era preta, não dava para ostentar nenhum outro defeito, minha cota já estava saturada.
À medida que fui crescendo, minhas técnicas de compensação só se tornaram mais refinadas. Mas estão aqui, nos elogios que nunca aceito, na dificuldade em dizer não, na rapidez em achar justificativa para o racismo/machismo alheio.
É claro que eu percebo como reproduzo automaticamente uma lógica cruel contra mim mesma. Mas à medida que reflito sobre o assunto, é difícil não perceber, obviamente, a culpa da sociedade e suas estruturas. Eu poderia enfrentar essa culpa a partir de diversos ângulos, mas hoje quero abordar o imaginário.
Durante uma audiência em uma Vara do Trabalho muito boa de se trabalhar era perceptível a dificuldade de muitos advogados em me perceberem como a juíza. É claro que isso traz outras questões: como eu gostei tanto de trabalhar em um lugar que me lembrava constantemente do meu não pertencimento? Quanta de violência eu naturalizei?
Mas isso é para outro papo. Aqui eu quero trazer a questão da imagem, qual é a imagem do Judiciário.
É preciso, claro, reconhecer que a imagem faz parte do próprio funcionamento de nosso cérebro. Criamos atalhos mentais para podermos dar respostas mais rápidas às questões cotidianas. Mas enquanto o atalho mental dedicado a pessoas brancas está aberto a possibilidades, o das pessoas negras é preso ao que Chimamanda Ngozi Adichie chama de “história única”.
Assim, enquanto um homem branco na sala de audiência pode ser absolutamente qualquer pessoa – do juiz ao réu – a mulher negra, sem dúvida, será tida como parte, ainda que na cadeira do juiz, ainda que de toga. Sim, pasmem, não há símbolo que me blinde do racismo.
O problema desses atalhos mentais lastreados em uma única história do negro é que essa historia não é de liberdade ou mesmo de igualdade. É uma história brutal de servidão forçada e não falo só da escravização de outrora. Falo de hoje, de meninos e meninas que ainda sentem que precisam compensar “o defeito de cor”.
Esse esvaziamento da existência negra, em especial de mulheres negras, gera, para além dos inúmeros problemas que todos nós conhecemos ou devíamos conhecer, a repetição de uma violência. A todo tempo, somos lembradas que não pertencemos, que não somos, que não há lugar de paz para nós. Não há repouso ou local seguro, a todo instante, em qualquer lugar, você será jogada para a zona do não-ser, como explica Frantz Fanon, reduzida a uma charge mal diagramada de uma existência desalojada de si.
Constatar isso é, por si só, violento. É duro reconhecer que, independentemente de quem eu seja ou do que faça, as pessoas já têm um lugar na prateleira, inferior e empoeirado, para me colocar.
A luta por mudar a imagem do Judiciário não é “só” uma demanda da própria democracia, mas também um compromisso com a não violência contra inúmeras mulheres que querem viver para além das limitações dos imaginários, dos estereótipos e dos preconceitos .
É para elas que eu dedico este relato no Dia Internacional da Luta pela Eliminação da Discriminação Racial. Para todas aquelas que, lançadas para uma existência esvaziada, para a zona do não-ser, presas a uma história única que sequer lhes pertence, conseguem reunir forças para, de forma urgente e radical, simplesmente existirem em toda a sua complexidade. A vocês, o meu orgulho e meu obrigada pelo exemplo!
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Bárbara Ferrito, doutorando em Direito pela UFF, mestre e graduada pela UFRJ, juíza do trabalho no TRT/1R, colunista e autora do livro “Direito e desigualdade: uma análise da discriminação das mulheres no mercado de trabalho a partir dos usos dos tempos”
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