No último dia 10, Kisha, cantora e MC, foi agredida em uma abordagem de agentes da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) na estação da Luz, no centro de São Paulo. Ela estava acompanhada de mais seis amigas que também voltavam de uma Batalha de Rima e estavam brincando entre si enquanto realizavam o trajeto de volta para casa.
Taynara Ferreira, conhecida como Pitanga ZN, era uma das amigas que estavam com Kisha. Ela é vendedora ambulante e também artista independente e conta que estava voltando de um evento simbólico na semana do Dia Internacional da Mulher. “A Batalha foi importante porque reunia apenas MCs mulheres e homens trans. Estavam voltando de um dia de muita paz, em que todo mundo tinha batalhado e estava feliz pelas meninas que tinham ganhado a batalha.”
Por isso, a energia era de alegria e, entre si, elas estavam rimando dentro do vagão. Como era domingo à noite, a jovem de 21 anos contou que tinham poucas pessoas no trem e enfatizou que não estavam rimando para pedir dinheiro, apenas cantando entre amigas. “Não passaria pela cabeça de ninguém que algo assim poderia acontecer, porque a gente estava muito feliz. Foi realmente de 0 a 100 muito rápido”, explicou Pitanga.
Alguns agentes da CPTM, e funcionários da empresa de segurança Gocil, se aproximaram e disseram que elas não poderiam cantar. Foi aí que a confusão aumentou de proporção. Pitanga afirma que após essa abordagem inicial, elas pararam de cantar.
“Começamos a conversar sobre opressão, sobre não poder se expressar, não poder levar nossa cultura [hip-hop] entre nós, porque de certa forma incomodou eles. E ele começou a argumentar na nossa conversa. Pedimos para respeitarem nosso espaço, enfatizamos que paramos de rimar, e que estávamos apenas conversando”, disse ela.
Foi então que uma das meninas fez um comentário que desencadeou a abordagem violenta dos guardas. “Uma delas comentou que era uma situação sem necessidade. Ele saiu de onde estava e começou a gritar, apontar o dedo e mandar a gente calar a boca.”
Ao parar na estação seguinte, chegaram mais alguns guardas que tentaram tirar algumas das garotas do vagão. Segundo as artistas, em meio à confusão generalizada, uma das guardas puxou as tranças do cabelo de Kisha e Pitanga foi jogada para fora do vagão por outro agente.
“As outras meninas estavam na porta do trem porque os guardas estavam batendo nos passageiros que queriam descer para nos ajudar”, afirma Pitanga.
A artista diz ainda que, quando perceberam que estavam sendo filmados, os agentes começaram a dizer que não tinham agredido ninguém. “O cara disse que não tinha colocado a mão em mim, mas no vídeo dá para ver que ele me pegou pelo braço e me jogou para fora com certa truculência”, explica.
Além da situação narrada pelo grupo, Pitanga conta ainda que ao irem para a delegacia, elas passaram por um descaso que escancara a certeza da impunidade em relação ao ocorrido. “Eles alegaram que a agressão da Kisha foi leve e simplesmente fizeram o que fizeram e acharam que não ia dar em nada porque somos corpos que podem fazer o que quiserem conosco. E tivemos que nos virar, compartilhando, entrando em contato com quem pudesse nos prestar ajuda.”
Veja o vídeo neste link: https://www.instagram.com/p/C4W4i_YLy8E/
Amparo jurídico – A CPTM alega que os seguranças foram chamados porque os passageiros estavam incomodados, mas na verdade eles já estavam dentro do vagão, que estava com pouca gente no horário do ocorrido. Guilherme Macedo, advogado que tem prestado assessoria jurídica ao caso, explicou que houve pessoas que até mesmo se disponibilizaram para testemunhar em prol das meninas.
Um requerimento está sendo enviado ao Ministério Público. E, segundo Macedo, essa é a medida na esfera penal. Mas também há a busca de reparação dos danos sofridos na esfera civil. “A Kisha teve o cabelo arrancado, estamos fazendo mais exames para constatar os ferimentos. Porque essa é uma questão muito importante dentro da estética da mulher negra. E ela teve o cabelo arrancado em um ato de ódio. Além do dano físico, tem o dano moral”, enfatiza
Ele também alerta que o debate sobre a violência na CPTM é fundamental diante do caso: “A gente não pode naturalizar a violência em si, mas principalmente essa que acontece na CPTM diariamente. Um dia depois dessa agressão, um ambulante foi espancado por três agentes da CPTM. E, ontem, houve mais uma agressão em uma catraca da CPTM. E não podemos naturalizar isso como normal”.
O advogado explica que além de pleitear a esfera civil e penal, eles buscam responsabilizar os agentes envolvidos, a empresa terceirizada e a CPTM. E escalonar também para o estado, já que a companhia é um serviço público. “Também vamos agir politicamente em prol de treinamentos para esses seguranças começarem a tratar gente como gente”
A deputada Erika Hilton (PSOL) se pronunciou sobre o caso e se dispôs a auxiliar nos encaminhamentos. Mas, sobretudo, Guilherme Macedo espera que o ocorrido seja um marco de mudança para regulamentar o trabalho do artista independente que está nas ruas, nos trens e assegurar o direito e o respeito ao trabalho de artistas independentes.
As cicatrizes da violência – Pitanga ZN, que mora no Rio de Janeiro, estava de passagem em São Paulo na semana em que a abordagem aconteceu. Ela, que atua como vendedora e artista, ressaltou os impactos emocionais diante de tamanha violência sofrida.
“A gente começa a questionar se a culpa foi sua e a buscar justificativas pro injustificável, mesmo sabendo que você não é culpada”, desabafa.
A artista conta que pretendia ficar a semana toda em São Paulo, mas que após a agressão sofrida, não conseguiu cogitar a permanência por mais alguns dias, já que precisaria trabalhar nas estações. “Eles têm certeza da impunidade, mas as pessoas realmente podem fazer o que querem comigo?”, questiona.
Além do trauma de ter sido violentada, Pitanga aponta o quanto toda a situação reforça que seu corpo é visto como “errado” pela sociedade.
“Se em todo lugar que eu for as pessoas olharem pra mim e acharem que meu corpo é o espaço delas, que podem fazer o que quiser, que pode ser tocado, isso já gera mais um trauma”, diz. “A gente começa a pensar que não pode andar, não pode cantar. É você simplesmente se sentir reprimida com tudo o que você faz. E se sentir errada, porque o que você faz te leva a isso, a tomar porrada, a ser apontada. E aí como é que continua fazendo? Se não tiver força, você para!”, completa.
Além de Kisha e Pitanga ZN, Sereia Bxd, Malê Bxd, Anjos MC, Athena BXD e Mlyn tentam seguir após o episódio de violência vivido por elas no último dia 10. “A Kisha está com a autoestima dela queridíssima. Não consigo nem pensar no que está passando pela cabeça dela. Porque se fossem pessoas que se calassem diante disso tudo, sabe? E pensar que você não pode ser livre tem um peso. Falaram em pleno século XXI, em 2024, que não podíamos cantar”, finaliza Pitanga.
O que diz a CPTM – Em nota enviada à reportagem, a CPTM informou que está realizando uma sindicância sobre a abordagem. “Caso sejam constatadas irregularidades na conduta dos colaboradores diretos da companhia, são aplicadas medidas administrativas que vão de advertência até demissão. Já os vigilantes terceirizados da Gocil são afastados e não podem mais atuar na companhia, sem prejuízo de eventuais sanções contratuais”, pontua.