No dia 1º de janeiro de 2023, Luiz Inácio Lula da Silva tomou posse como o 39° Presidente da República Federativa do Brasil. Dentre as diversas tradições que caracterizam as cerimônias de inauguração do governo federal, estava a emblemática subida do então novo Presidente na rampa de acesso ao Palácio do Planalto, palco principal das deliberações presidenciais. A cena deste ano, contudo, diferiu de tudo o que já havíamos testemunhado: Lula, acompanhado de sua esposa Janja, fez a breve caminhada lado a lado com figuras representativas da diversidade brasileira. Junto a ele, estava Aline Sousa, mulher negra e Diretora da Central das Cooperativas de Trabalho de Catadores de Materiais Recicláveis do Distrito Federal.
Quem acompanhava a cena do grupo caminhando de mãos dadas tentava prever quem passaria a faixa para Lula, parte importante do rito de posse. A emoção tomou conta quando a eleita para tal missão foi exatamente Aline, que ali representava a maior parcela demográfica do país. No dia seguinte, lia-se nas manchetes que Lula havia recebido a faixa “pelas mãos do povo brasileiro”. Naquele ato simbólico, o presidente dava sinais de entendimento de que o suprassumo da representação do Brasil são as mulheres negras.
Diante do gesto, cresceu a esperança, sobretudo no movimento de mulheres negras, de que os rumos políticos, sociais, ambientais e econômicos do país seriam agora tomados sob a égide de uma gestão verdadeiramente progressista, democrática e, portanto, mais empática com as necessidades históricas da população negra.
Naquele momento, planejávamos as ações do Movimento Mulheres Negras Decidem para 2023, ano marcado pela ânsia da reconstrução após o descalabro conduzido pelo governo anterior. Somos um grupo que, desde 2018, tem se dedicado às reflexões e ações em torno da sub-representação de mulheres negras nos espaços de tomada de decisão. Escolhemos focalizar a discussão sobre a baixíssima presença de mulheres negras no Judiciário a partir daquela que viria a se tornar nossa pauta central do ano: as indicações de Lula ao Supremo Tribunal Federal (STF). Durante meses, empreendemos uma grande campanha nacional em defesa de uma jurista negra na mais alta instância de deliberação jurídica do país.
Hoje, onze meses após a posse de Lula e passadas as suas duas indicações à Suprema Corte, o sentimento que fica é de desgosto. O presidente, que durante as eleições recebeu o apoio determinante dos movimentos negros, se mostrou impassível a compreender com profundidade a nossa reivindicação, que não se limitava a um simples exercício estético. Incluir uma jurista negra gabaritada e comprometida com a democracia e os direitos humanos significava um passo crucial para a reestruturação de um sistema judiciário racista e pouquíssimo diverso.
Guiadas por nossa radical imaginação política, ousamos sonhar com um STF ligeiramente mais próximo da realidade brasileira, sobretudo no que concerne a raça e gênero. Além disso, nossa campanha tinha um intuito muito claro de chamar a atenção da população brasileira e da alta cúpula do poder para o fato de que os sentidos de Justiça empregados até aqui, quase sempre, serviram para reproduzir os velhos estigmas coloniais e racistas contra a maioria da população.
Não é trivial que a população negra é a maior parte da população carcerária, homens negros são os que mais morrem em confrontos com a polícia e as periferias do Brasil, composta de maioria negra, são as que mais atingidas com um modelo de segurança pública pautado no morticínio. A Justiça, representada por uma mulher de olhos vendados, não tem enxergado as urgências de um Brasil profundamente desigual e injusto. Nosso exercício enquanto movimento de mulheres negras é não só lutar para que a “venda” caia por terra, mas construir caminhos e apontar soluções para que os olhos da Justiça se abra para um projeto de nação pautado na garantia da vida e do bem viver.
O ano de 2023, que começou sinalizando mudanças, termina com o gosto amargo da decepção por mais uma vez não sermos compreendidas como atrizes fundamentais para o aperfeiçoamento da democracia brasileira, em nome do velho pacto patriarcal e racialmente branco.
*Beatriz Amparo, Gabrielle Abreu, Jhenifer Ribeiro e Tainah Pereira, autoras deste texto, formam a Coordenação Nacional do Movimento Mulheres Negras Decidem.
***Este conteúdo é uma coluna de opinião que representa as ideias de quem escreve, não do veículo.