Em entrevista, formadora de novos empreendedores dá dicas para que pequenos negócios sejam sustentáveis e não se transformem no caminho ‘que sobrou’
Quando começou a empreender, aos 16 anos, Monique Evelle conta que tinha os dois pés no chão, a cabeça atenta ao mundo e nenhuma referência de pessoa negra à frente de grandes empresas. Aos 27 anos, a empresária, jornalista e consultora trabalha para preencher essa lacuna. Monique é fundadora da Desabafo Social — organização voltada à geração de renda, comunicação e educação em direitos humanos — e da Inventivos, plataforma de formação pessoal e profissional.
Associar esse desejo a uma atuação idealista e romântica seria precipitado e reducionista. Monique vai muito além. A mulher negra nascida na Bahia defende a importância de um olhar estratégico no mundo dos negócios, porque “dinheiro no bolso é uma forma de autoestima”, como disse em entrevista à revista Gama, em 2021. Ela está entre as 50 profissionais mais criativas do Brasil (Wired, 2020), as 100 empreendedoras do ano (Bloomberg Línea, 2021) e as 500 personalidades mais influentes da América Latina (Bloomberg Línea, 2022).
Consultora de empresas como Google, Natura, UOL, Nubank e Ambev, a empresária falou ao Expresso na Perifa após participar de um dos encontros da Salvador Capital Afro, evento sobre turismo e empreendedorismo que tem como público-alvo a população negra desse setor na capital da Bahia. Ao longo da entrevista, Monique conta como é formar negros e negras para ocupar espaços colonialmente destinados a pessoas não-negras em um país racista como o Brasil.
EXPRESSO NA PERIFA — Para muitas pessoas da periferia o empreendedorismo é o único caminho possível pela falta de oportunidades no mercado de trabalho. Como mentora e formadora de novos empreendedores, você avalia que esse perfil é majoritário, a maior parte das pessoas periféricas se tornam empreendedoras por falta de outras opções, ou o empreendedorismo já se tornou uma escolha entre várias?
MONIQUE EVELLE — A maioria das pessoas ainda empreende por necessidade. Neste ano, a Global Entrepreneurship Monitor divulgou um dado de que 1 a cada 2 empreendedores têm um negócio motivado pela sobrevivência. Mas negócios que surgem por conta da necessidade raramente têm um plano de desenvolvimento ao longo dos anos. Primeiro porque a necessidade tira o direito desse empreendedor e empreendedora de fazer escolhas. A pessoa precisa do dinheiro para comprar a comida de amanhã, para pagar a conta que já chegou. Isso é exaustivo e consome quem empreende nesse processo. Por outro lado, empreendedorismo não é um conhecimento que a gente tem acesso na escola ou um assunto de domínio comum. Isso faz com que até mesmo pessoas com ideias de negócio que podem ser prósperas se mantenham presas ao ciclo em que o negócio não se desenvolve.
No meu trabalho de formação de empreendedores, principalmente na Inventivos, que é especificamente uma plataforma de formação para novos empreendedores, eu ensino como pessoas que empreendem ou querem começar podem ver oportunidades no mercado, como tomar decisões e como fazer, de ideias, negócios e empresas sustentáveis. Ou seja, levando em consideração os dados e o perfil de novos empreendedores do Brasil, é importante pensar e propor ações para que o empreendedorismo seja desprecarizado e seja, cada vez mais, uma escolha com plano de futuro e não a solução que restou.
Como você começou a empreender, quais foram suas influências e quais definiria como os primeiros grandes desafios?
Minha primeira empresa surgiu de uma iniciativa que realizei ainda na escola em que eu estudava em Salvador, quando tinha 16 anos. Quando as ações desse trabalho começaram a se desdobrar em projetos contratados por marcas e outros serviços, eu demorei para entender que o que eu estava fazendo era empreendedorismo. Eu não tinha referência de pessoas pretas empreendendo. E esse é um dos primeiros desafios quando você é uma pessoa preta e vem da periferia: com quem você pode aprender? A maioria dos casos de empresas de sucesso que têm visibilidade são de pessoas brancas.
Empreender e fazer dar certo nos permite ocupar novos espaços. Mas na maioria das vezes, são espaços e pessoas que não esperam ter que lidar com mulheres, pessoas pretas, periféricas e jovens. É um processo exaustivo para conseguir trabalhar. Uma exaustão que homens e pessoas com outro perfil social, por exemplo, não precisam passar. Por isso que são importantes pessoas e iniciativas como a Salvador Capital Afro, evento focado em pessoas pretas que aborda afrofuturismo e empreendedorismo como temas. O evento acontece na primeira semana de dezembro, em Salvador. Pessoas pretas precisam de ferramentas e orientações que levem em consideração o seu perfil, a sua realidade e o recorte racial. É preciso considerar as diferenças que nos atravessam na hora de formar novos empreendedores e compartilhar a experiência de quem deu certo.
É preciso considerar as diferenças que nos atravessam na hora de formar novos empreendedores e compartilhar a experiência de quem deu certo
No trabalho que você desenvolve como mentora, quais os valores que você acha fundamentais e busca desenvolver?
Empreender dá medo e é importante que todo mundo saiba para não se sentir como a única pessoa que não tem coragem de começar. Esse medo e a falta de apoio de pessoas próximas faz com que novos empreendedores e novas empreendedoras trilhem um caminho solitário. Mas quando a gente encontra a nossa comunidade, a gente vai mais longe. O valor da comunidade e a importância de fazer parte de uma é um dos princípios que faz diferença para quem quer empreender. A comunidade impulsiona a busca por novos resultados, orienta no fazer, porque é feita de outras pessoas que estão fazendo funcionar. É diferente de apenas realizar uma formação e não ter com quem contar depois.
Outro ponto importante é: saiba o que você quer conquistar e faça o que precisa ser feito. Saber o que quer conquistar é a sua estrela do norte, o que vai direcionar as decisões que você irá tomar em cada estágio do seu negócio. Fazer o que precisa ser feito são as ações que você vai precisar colocar em prática para alcançar sua estrela do norte. E também significa saber que nem tudo será como a gente gostaria que fosse, mas que nossos objetivos exigem ações para construir a realidade que queremos.
Muitas organizações dos movimentos sociais defendem o empreendedorismo como uma forma de empoderamento de populações periféricas e de distribuição mais justa do lucro, sem atravessadores que não participam da produção e só ganham com a exploração. O empreendedorismo em tempos de crise como uma pós-pandemia permite esse tipo de ideal?
Empreender é um dos caminhos para conquistar autonomia. Mas empreendedores também precisam de equipe, precisam contratar para crescer e isso não significa que quem empreende vai reproduzir essa lógica de trabalho baseado em injustiça. Eu incentivo que pessoas que têm o desejo de empreender apostem em suas ideias, mas é importante considerar que nem todo mundo tem esse sonho. E isso não é um problema. Empreender é apenas uma das possibilidades de ter uma remuneração justa e realizar sonhos. Mas algumas pessoas entendem que tem o perfil para fazer parte de equipes montadas por outras lideranças e não para liderar. E tá tudo bem. Não existe um único caminho, muito menos um caminho certo ou errado quando se trata de realização pessoal e profissional. O mais importante é capacitar as pessoas para que elas não sintam medo de seguir pelo caminho que escolheram e que faz mais sentido para elas.
Tem um CPF por trás de todo CNPJ e quem empreende não pode ignorar isso
Num mundo em que os direitos trabalhistas se tornam cada vez mais escassos e as doenças por excesso de trabalho crescem, é possível aliar empreendedorismo a condições dignas de saúde física e mental ou é preciso escolher entre vida pessoal e ser um empreendedor de sucesso?
Não existe a possibilidade de realizar qualquer trabalho em que a saúde mental ou física sejam negligenciadas. Como alguém emocionalmente exausto consegue produzir com qualidade? Não consegue. Não à toa, esse é um dos temas principais na formação da Inventivos e nas mentorias que realizo: saúde mental. Tem um CPF por trás de todo CNPJ e quem empreende não pode ignorar isso.
É possível ter sucesso empreendendo e se manter saudável. E você começa estabelecendo limites pessoais: qual é a sua hora de descanso? Quais dia da semana você nem vai encostar no computador?
Se você constrói o seu negócio com consistência, não são algumas horas de descanso que vão atrasar o seu sucesso. São elas que vão permitir que você continue trabalhando, na verdade.
Após 11 anos como empreendedora, quais as principais dicas que você dá a quem deseja empreender?
Procure a sua comunidade. Eu faço parte de algumas, por exemplo. Porque você pode começar sozinho, mas você chega mais longe acompanhado. Não compare seu início com o meio de ninguém. Você não sabe por quais desafios a pessoa que você se compara já passou, nem quais privilégios ela pode ter usufruído. Até pessoas que tiveram uma realidade parecida com a sua, com certeza, vão ter percorrido um caminho diferente para empreender. Faça o que precisa ser feito e não tenha medo de pedir ajuda. É importante que quem está começando saiba disso.