“Quantos elementos formam aquela mulher?”. O trecho da música ‘Frevo Mulher’, escrita por Zé Ramalho e entoada como um dos clássicos do carnaval pernambucano, pode ajudar a ilustrar um pouco da potência e arte que compõem Caetana, artista independente recifense que carrega consigo muito mais que elementos: uma vida inteira. E um deles merece destaque: é que a artista se tornou a primeira cantora trans a gravar um frevo, considerado Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.
Hoje com 30 anos de idade, a artista é formada por vários atravessamentos que tiveram início na comunidade do Coque, localizada na Ilha de Joana Bezerra, na região central do Recife, em Pernambuco. Acontece que, em meio ao cenário de violência, racismo e outros reflexos da periferia, Caetana também encontrou a arte popular – elemento tão presente em diversas camadas da sociedade pernambucana. “A relação com o frevo é muito em êxtase, muito viva. O processo de criação foi dessa bagagem que eu carrego na cidade do Recife e de memórias que se deu em palavras”, explica.
O marco histórico foi conquistado após o lançamento da faixa “Eu Gosto da Boa Vista”, presente pela primeira vez no seu álbum Afronordestina e agora, mais recentemente, na versão Deluxe Afronordestina, lançada em dezembro de 2023. “Quando as pessoas me conhecerem, elas vão sempre bater no meu primeiro álbum, que é algo bem misturado, sempre pensando no ser plural que eu sou, musicalmente, e do que eu gosto”, define. O disco, composto por obras autorais e colaborativas, mescla o coco de roda, frevo e maracatu com hip-hop, trap, rap, pop, funk, jazz, blues e outros gêneros, que sintetizam as raízes de Caetana a partir dos elementos da cultura popular pernambucana.
Quando Caetana se torna arte — Nascida e criada no Coque, comunidade da cidade do Recife, Caetana é multiartista, brincante, produtora, cantora, agitadora cultural e dançarina, e vem construindo sua arte há vários anos. Seu contato com a arte começou ainda na infância, onde a televisão se tornou a porta de entrada para o que viria a ser sua definição como pessoa: ser artista. Tudo começou quando a mãe pôs no canal da TV Cultura, que exibia uma performance de dança contemporânea. “Eu via aquelas pessoas dançando, se movimentando, e eu lembro que achei bonito aquilo, que aquilo me tocou. Então, eu sendo uma criança e vendo aquilo como belo, de certa forma já é meu encontro com a arte”, explica.
Na prática, Caetana se define como uma agitadora cultural – e o passado da artista consegue provar bem o seu ponto, já que além de ingressar em algumas companhias de dança pernambucanas, também foi responsável pela criação da Banda de Leão, que chegou ao fim em 2013, e pelo Maracatu Baque Forte, que segue ativo até hoje.
E, como a arte não se dissocia do sujeito, ao mesmo tempo que Caetana pisava com força em seus passos de dança e cantava alto em suas apresentações, também foi se conhecendo como corpo periférico, negro e trans na sociedade. Ela conta que sua arte também funciona a partir de um incômodo com o cenário que era, e segue até hoje sendo, majoritariamente branco. “Pensar a música como possibilidade de me tornar artista, porque me incomodavam muito o fato de terem muitos artistas brancos, novos, na cidade. Essas causas sociais vivem muito forte, e a arte também vinha como um lugar para escoar isso”, afirma.
A cultura popular também é travesti — Como uma pessoa que possui diversos recortes sociais, Caetana não está imune a processos até mesmo sabotadores da sua própria carreira. Felizmente, a artista hoje se coloca como alguém responsável por “criar e dar manutenção” a elementos da cultura popular – algo tão visto como tradicional, e praticamente imutável, pela cena local. “Sou resultado disso: de me manter firme nesse cenário de cultura tradicional”, defende.
Questionada, a artista não nega que receba julgamentos de dentro do cenário musical – onde o frevo, por mais que seja voltado para cultura popular, ainda seja branco e, principalmente, cisgênero. “Corpos travestis, não-binários e indígenas precisam estar nesses espaços. O frevo se renova o tempo todo, então não há como não acontecer essa mudança, enquanto pessoas que estavam há tanto tempo fazendo a mesma coisa não utilizam dessa ferramenta muito importante que é a transformação, principalmente para uma cidade como o Recife”, aponta.
Atualmente, Caetana vive em São Paulo onde afirma que, como artista independente, consegue mais oportunidades voltadas ao seu trabalho. A cantora, inclusive, tem se apresentado na cidade divulgando a versão deluxe do disco. Sem previsão de voltar à sua terra natal, ela aproveita para chamar atenção sobre esse olhar fechado e negativo da cidade do frevo para ela. Neste cenário, é chegado o momento de questionar não só quantos elementos, mas o que falta para que artistas como ela e tantos outros façam parte de algo tradicional e plural como é o frevo e a cultura popular pernambucana.