Grazielle Silva, assistente administrativa de 33 anos, conta que na infância foi uma menina reservada. Formou o primeiro grupo de amigas aos 15 anos, quando começou a sair à noite para se divertir. Num desses rolês, com 18 anos, conheceu um garoto e eles começaram a namorar sem o conhecimento da família dela.
O namorado também não demonstrou interesse em apresentá-la para sua família. O que Grazi sabia é que ele morava na Bahia e se mudou para São Paulo, onde alguns parentes moravam. Após sete meses de relacionamento, Grazi engravidou. “Pra mim foi um grande susto, eu não estava esperando, eu imaginava que iria demorar muito pra eu ter filhos.”
Em 2020, nasceram 380,7 mil filhos de mães com idade entre 10 e 19 anos, segundo dados preliminares do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos. O número de adolescentes grávidas tem diminuído: entre 2000 e 2019 houve queda de 37,2%, segundo estudo da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). “Olhando os dados de uma maneira macro a gente vai perceber um decréscimo no número de adolescentes grávidas, mas quando a gente olha as periferias, esses números vão sofrer pouca alteração”, aponta Elaine Amazonas, assistente social e gerente da unidade da Plan International Brasil na Bahia, organização que defende os direitos das crianças e adolescentes, com foco na promoção de igualdade de gênero. São as adolescentes negras a maioria no panorama de gravidez na adolescência em 70% dos casos, segundo dados de 2014 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). “A gente vai ter uma série de atravessamentos que vão de alguma forma contribuir de maneira mais incisiva para que as adolescentes negras engravidem”, afirma Elaine. Os fatores, segundo ela, passam pela educação pública, em que as jovens negras estão em maior número, que não contempla a educação sexual e reprodutiva. Passam também pelo não conhecimento do próprio corpo e falta de trabalho com a autoestima, o que diante de uma sociedade racista e sexista a impossibilita de dizer “não” e exigir o uso de camisinha durante o ato sexual, por exemplo. A ginecologista e obstetra Andrea Gonçalves, que realiza atendimentos em São Paulo (SP) e Nitéroi (RJ) e estuda a saúde da mulher negra, ressalta também a violência sexual e a falta de informação: "Quanto menor o nível socioeconômico, menos acesso à informação de qualidade e em saúde essa adolescente tem."
‘Eu só pensava em como eu iria contar pros meus pais’ — Mesmo passando mal, Grazielle não desconfiou logo de primeira que pudesse estar grávida. Chegou a tomar remédio para o estômago achando que algo que comeu havia causado enjoo. Depois, acompanhada de uma amiga, fez um teste rápido de gravidez. Deu negativo e ela ficou aliviada. Só que, como o mal-estar não foi embora, ela resolveu fazer um exame de sangue, dessa vez a irmã a acompanhou. Quando a médica informou o resultado positivo, Grazi riu de nervoso. “Na hora eu só pensava em como eu iria contar para os meus pais, qual seria a reação deles, o que eu iria fazer dali pra frente. Fiquei em choque”, conta. “Os dois choraram bastante, talvez por causa da dificuldade que seria, porque eu dependia deles”.
O receio de contar para os pais é comum entre as adolescentes grávidas. A médica ginecologista e obstetra Andrea Gonçalves conta que já atendeu muitas meninas que demoraram meses para dar a notícia e iniciar o pré-natal. Para a médica, é necessário que a sociedade fale mais sobre esse assunto, para que as meninas não tenham medo de buscar atendimento.
Parte desse medo vem também dos julgamentos que a adolescente grávida recebe. “Socialmente a adolescente que engravida ainda é o mau exemplo, mesmo que haja várias outras adolescentes na comunidade que tenham engravidado, mas ela ainda é muito estigmatizada”, diz a assistente social Elaine Amazonas.
Educação sexual — Para combater essa estigmatização, um caminho viável é a educação sexual. Adolescentes precisam conhecer desde as informações mais básicas e saber lidar com o próprio corpo. “Eu já fiz o parto de uma menina que me perguntou se ela tinha dois úteros e um ovário, ou se era o contrário”, diz Andrea. “São coisas que a gente precisa falar antes dessa menina estar ali para ter um bebê.”
A educação sexual, explica Elaine, permite que os adolescentes se entendam enquanto sujeitos e tomem decisões mais assertivas sobre o futuro. Permite também que se discuta o papel social dos homens e das mulheres, uma paternidade responsável e o respeito às mulheres.
Elaine acha que vivemos um momento triste com a exclusão da palavra “gênero” da Base Nacional Comum Curricular e o mito de ideologia de gênero. “Se a gente não consegue conversar sobre gênero, como é que a gente vai conseguir pensar em educação sexual reprodutiva?”, questiona.
A falta de informação evoca também outra questão de saúde pública: as Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTz). “Muitas vezes essa gravidez vem acompanhada de diagnóstico de IST, como HIV e sífilis. Os números vêm crescendo muito entre as mulheres jovens. Eu já tive muitas vezes que dar notícia para adolescentes de 15 e 16 anos que elas tinham HIV ou sífilis”, relata Andrea.
O Boletim Epidemiológico de HIV/Aids, do Ministério da saúde, indicou que entre 2000 e junho de 2021 foram notificadas 141 mil gestantes com HIV. O número de casos é maior na faixa etária entre 20 e 24 anos.
‘Ele dizia que não tinha condições’ — Com três meses de gravidez e já sabendo que seria mãe de uma menina, Grazielle deu a notícia para o pai da criança. “Não tive apoio nenhum, ele dizia repetidamente que não tinha condições de ter filho agora.” Quando contou que já era pai de outras duas meninas, Grazi rompeu o relacionamento e decidiu cuidar sozinha da criança. O rapaz nunca demonstrou interesse na gravidez.
“Nesse período a mulher se sente rejeitada, sozinha, e isso de fato aconteceu comigo porque eu já estava com essa carga de que eu teria que criar um filho sem o apoio do genitor dela, minha família fez uma grande diferença”, diz.
Durante a gestação, a adolescente periférica pode ter dificuldade de acesso aos serviços de saúde necessários. A médica Andrea afirma que apesar dos méritos do SUS (Sistema Único de Saúde), existem problemas estruturais. “Nem toda a adolescente vai ser encaminhada para o serviço de alto risco com a velocidade necessária ou vai ter acesso rapidamente a todos os exames que ela necessita.”
Vale mencionar ainda mais uma questão que permeia o cenário de gravidez precoce no Brasil: o desejo de engravidar cedo, que, inserido num contexto cultural, está relacionado à conquista de independência. “No sentido de que o ser mãe também me dá um lugar no mundo, então eu não sou mais só aquela aquela adolescente, eu sou mãe de fulaninho”, explica Elaine.
A “escolha” pela gravidez por vezes se relaciona com o casamento infantil. “Às vezes a menina quer se inserir em um outra estrutura de poder no território através do casamento e isso pode ser incentivado pela própria família”, afirma Andrea.
O casamento infantil é a união formal ou informal de um casal em que ao menos um dos cunjugês tenha menos de 18 anos. Segundo pesquisa Tirando o Véu (2019) da Plan Internacional, o Brasil é o quarto país do mundo, em números absolutos, com maior quantidade de casamentos de meninas.
‘Ela me fez amadurecer bastante’ — Gabrielli, o nome que Grazi escolheu para a filha, nasceu de parto normal. Ao segurá-la, Grazi prometeu para si mesma não deixar faltar nada para sua menina. “Ela me fez amadurecer bastante”. Os primeiros meses foram frustrantes, já que “não tinha a mínima ideia de como cuidar de um bebê”. Mas teve ajuda da mãe e da avó. Quando a bebê completou três meses, o pai a conheceu, registrou e começou a pagar pensão. “Hoje eu tenho uma melhor amiga, o nome dela é Gabrielli e vai completar 15 anos no dia 11 de agosto”, comemora Grazielle.
Não é regra que adolescentes tenham apoio familiar na criação dos filhos e essa realidade, aliada à falta de políticas públicas, gera consequências como a evasão escolar. O abandono, por sua vez, pode significar menores chances de evolução socioeconômica e inserção nas estatística dos “nem-nem” — população jovem que não estuda e não trabalha — ou em postos de trabalhos precários, perpetuando ciclos de pobreza.
Com relação ao panorama nacional, Andrea afirma: “sendo as mulheres a maior parcela da população brasileira, não tem cabimento a gente falar em evolução socioeconômica do país sem falar da diminuição da gravidez na adolescência e da proteção da saúde reprodutiva dessas meninas”.