Projetos aliam formação à mudança na estrutura discriminatória das empresas
Com o objetivo de construir caminhos de combate ao racismo e de acesso da população periférica negra e indígena a oportunidades de formação, qualificação e empregabilidade, os empreendedores sociais Vitor Del Rey e Magda Gomes resolveram criar em 2019 o Instituto Guetto. O nome é uma sigla para Gestão Urbana de Empreendedorismo, Trabalho e Tecnologia Organizada.
Até este ano, mais de 30 empresas — a exemplo de Google, Ambev, Microsoft, Facebook, Apple, Tim e Natura — fecharam parcerias com a organização. O Guetto desenvolve pesquisas, indicadores e gerencia projetos antirracistas. Além de divulgar vagas e prestar consultorias e treinamentos nas áreas de educação em direitos humanos.
E foi a percepção de que a divulgação de vagas não era suficiente para democratizar o acesso ao mercado de trabalho que deu origem a um desdobramento importante: a Escola da Ponte Para Pretxs é um programa idealizado a partir de uma comunidade no Facebook onde pessoas negras divulgam oportunidades de emprego, estágios e bolsas de estudo.
A escola começou a acontecer presencialmente no Rio de Janeiro, em prédios de parceiros como a Fundação Getúlio Vargas, porém, com a pandemia, as aulas passaram a ser online e a alcançar brasileiros fora do País e até moradores de outras nações de língua portuguesa no continente africano. Apenas nos últimos 12 meses, foram mais de mil alunos formados.
Qualificação não basta — Os cursos oferecidos levam em conta as principais carências dentro das comunidades periféricas atendidas pelo instituo e as melhores oportunidades disponíveis no mercado para gerar maior mobilidade social, diretamente associada aos ganhos financeiros.
A partir da identificação de que mesmo os qualificados para as vagas esbarram em processos seletivos racistas, o instituto também oferece consultoria às empresas para mudar a estrutura de acesso com a implementação do letramento racial, da formação de gestores e de modelos de aceleração de talentos negros dentro das companhias, conforme explica a consultora organizacional Rosana Fernandes, 36, diretora executiva do Guetto.
“Participamos de alguns processos seletivos porque muitas vezes o sistema que seleciona, o gestor que analisa e entrevista e todos que estão à volta, por mais que o candidato esteja apto e exista a necessidade profissional, ainda não estão dispostos a abrir mão de privilégios. A seleção ainda responde a uma estrutura racista”, define.
Uma pesquisa do Instituto Guetto realizada no ano passado em parceria com a Indeed, maior plataforma de busca de empregos do mundo, ouviu 245 profissionais negros e constatou que 47,8% deles não se sentiam pertencentes à empresa em que trabalhavam. A maioria (63,7%) não conseguia ver pessoas negras em cargos de liderança, mas identificava grande parte em equipes de serviços gerais, como limpeza e portaria.
Trabalho contínuo — Rosana avalia que transformar a cultura demanda continuidade nos projetos e políticas. Iniciativas isoladas, ressalta, não são efetivas para a mudança.
“Não adianta a empresa promover uma palestra de letramento racial ou contratar um único profissional e achar que a questão está resolvida. O investimento precisa ser na formação continuada, em ações como falar e valorizar a cultura afro-brasileira, levar pessoas e especialistas para falar sobre racismo, mas também sobre outras questões ligadas à nossa cultura. Precisamos trabalhar a provocação cultural continuamente por meio de espaços como comitês e conselhos de diversidade”, explica.
O primeiro passo, ressalta, é admitir o racismo como algo estrutural, institucional e presente para, a partir disso, mapear o entendimento, o envolvimento e o senso de diversidade dentro da empresa. Depois, estabelecer uma trilha de formação contínua e permitir que lideranças negras tenham acesso a espaços de tomada de decisão.
Pessoas como Juliana Xavier Rufino, 30, moradora do bairro Gamboa, região periférica de Salvador (BA), que cursa inglês avançado na Escola da Ponte Para Pretxs e enfrenta os obstáculos de conectividade para dar continuidade ao aprendizado em formato digital.
“As dificuldades que tive para concluir meus estudos foram pelo fato de ser remoto e aplicação dentro da minha vida prática, já que eu não convivo com falantes da língua inglesa ou pessoas que falem inglês fluentemente. No entanto, tirando a conectividade, eu acho o curso muito bom, espero que o projeto continue porque, de fato, ele tem me ajudado muito.”
O processo é lento — Apesar de entender que o assassinato pela polícia estadunidense de George Floyd, em 2020, lançou holofotes sobre o racismo em todo o mundo, o processo de enfrentamento no Brasil segue lento, analisa Rosana Fernandes.
Para ela é fundamental que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) aposte em pesquisas e indicadores como o censo, ignorado durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), para que as ações tenham conexão com a realidade e possam ser analisadas.
Rosana acredita que a ausência de dados prejudica a leitura do cenário real do país e defende a necessidade de voltar a valorizar a ciência e a pesquisa tanto na gestão federal quanto na administração das empresas. Caminhos que julga fundamentais para criar políticas assertivas e bem dirigidas.