O Expresso na Perifa entrevistou pesquisadores para falar sobre a recém-aprovada Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, cujo objetivo é estabelecer normas gerais em âmbito nacional, visando organizar e padronizar o funcionamento das corporações
A legislação, identificada como Lei nº 14.751, de 2023, foi sancionada pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, no último dia 12 e publicada no Diário Oficial da União em 13 de dezembro. No entanto, a sanção não ocorreu sem ressalvas, incluindo 28 vetos a determinados dispositivos.
Além de promover a organização e padronização das atividades das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros, a lei também estabelece diretrizes, direitos e deveres para as referidas instituições.
O processo legislativo que culminou na sanção presidencial teve início com o Projeto de Lei (PL) nº 3.045, de 2022, aprovado no Plenário do Senado em novembro. A relatoria ficou a cargo do senador Fabiano Contarato (PT-ES), e a matéria foi analisada em regime de urgência tanto na Comissão de Segurança Pública (CSP) como na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
O projeto, inicialmente proposto pelo governo Fernando Henrique Cardoso, em 2001, foi aprovado na Câmara dos Deputados no final de 2022.
Autoritarismos e democracia – A nova legislação revoga, em tese, o antigo Decreto-Lei nº 667, de 1969, que regulamentava o funcionamento das PMs e dos Corpos de Bombeiros Militares até então, mas na prática não é bem assim.
“A perspectiva é de poucas mudanças. No fundo, a nova lei reproduziu um modelo construído nos usos e costumes e fundado numa lei do regime autoritário. Na verdade, a gente não revogou a lei de 1969, a gente só atualizou. Trouxe alguns elementos da Constituição de 1988 para o texto sobre polícia militar relacionados aos direitos humanos, mas existem dubiedades”, afirma o presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor da FGV-EAESP, Renato Sérgio de Lima.
Ele aborda, por exemplo, o artigo 29 da lei orgânica, que vincula os policiais diretamente aos governadores. De acordo com ele, isso abre margem para diferentes ações da polícia em estados com chefes do Executivo mais ou menos influentes, além de possível incidência política da polícia na criação ou não de secretarias de segurança estaduais, interferindo em uma instância a mais de controle.
Isso não deve ocorrer, de acordo com o pesquisador, apenas em estados que são ‘institucionalmente fortes’. “Existe uma zona de sombra que, no fundo, vai ser preenchida pela força da polícia em cada lugar, pela capacidade de a polícia eventualmente entregar retornos, por exemplo, na redução da criminalidade ou não, e numa relação que, na verdade, não blinda a polícia de política partidária, que é algo que precisaria ser blindado”, avalia.
Para Lima, o que definirá o impacto futuro da lei recém-aprovada será a sua regulamentação. “A lei anterior, por exemplo, que é o decreto Lei 667, de 1969, é regulada por um decreto presidencial, de 1983, chamado R-200 [Regulamento para as Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares]. As questões operacionais são detalhadas nele. Temos ainda uma possibilidade de ver [avanços nos detalhes que ficaram vagos na lei orgânica] a partir da regulamentação. Isso vai depender da disposição do governo federal em fazer um decreto mais objetivo na divisão de papeis, competências e assim por diante”.
Hipermilitarização em curso – Ao tratar sobre a nova lei orgânica sancionada em dezembro, o geógrafo e doutor em Sociologia, Marcelo Bordin, fala de uma explícita resistência às transformações estruturais no país. “O Brasil é um país em que se observam inúmeras mudanças, mas que de fato não alteram as estruturas de poder, o que possibilita a manutenção das nossas imensas desigualdades sociais. No campo da segurança pública, isso não é diferente.”
Bordin fala também de um crescente processo de hipermilitarização envolvendo todas as polícias, não apenas as militares. “Cada vez mais, os valores militares estão em primeiro plano na construção das formas de policiamento, em especial o policiamento ostensivo, que geralmente é o primeiro contato entre Estado e cidadão em uma situação de emergência”, aponta.
Lima destaca ainda outras lacunas que não foram resolvidas com a aprovação da nova lei, como regras mais explícitas sobre o vínculo das PMs ao Estado, ao passo que segue como “força auxiliar” do Exército. “O modelo da gendarmerie francesa [guarda nacional] é um bom exemplo [para visualizar isso] porque lá ela é militar. Em assuntos militares, ela responde ao Ministério da Defesa, mas em assuntos de segurança e polícia, ela responde e é controlada pelo Ministério do Interior da França”, observa.
Para o pesquisador, a lei aprovada no Brasil reforça o modelo em vigência, que responde à lógica das Forças Armadas e reproduz o modelo militar. Esse formato, de acordo com o pesquisador, é uma particularidade brasileira que deveria ser revista.
Controle social e periferias – A lei orgânica recém-aprovada, de acordo com Lima, não responde a vários desafios, como o de transformar as polícias em instituições mais passíveis de transparência e de controle civil.
“Existem questões diárias na relação com as comunidades, na relação com o reconhecimento do racismo institucional ou estrutural, na forma como a gente aborda dilemas como a população LGBTQIA+, negros, mulheres. Enfim, a definição do papel e da missão das polícias. Isso a lei não faz. A aprovação da lei restringe o debate sobre segurança como direito social. É mais do mesmo, trazendo um texto moderno com questões que já estão em operação e construção há pelo menos 54 anos.”
Bordin também fala sobre suas preocupações no que diz respeito ao controle civil sobre as polícias. “As instituições podem alegar sigilo nos seus dados ou mesmo na forma de agir ou sobre as operações. Ainda que algumas ações devam contar com sigilo, o policiamento ostensivo cotidiano deveria ter uma maior participação da sociedade”, afirma.
O pesquisador chama a atenção para a realidade de bairros mais pobres. “Ao que tudo indica, não serão observadas mudanças na forma de agir [das polícias], em especial para as populações das áreas periféricas e bairros mais pobres que, historicamente, sofrem com a atuação diferenciada das agências de segurança pública”, finaliza.