Na última quarta-feira, 8 de novembro, MC Hariel realizou uma aula aberta na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), dedicada à troca de ideias sobre filosofia, linguagem, arte e cultura. Durante essa interação, o artista proporcionou uma visão aprofundada da construção do seu mais recente álbum a ser lançado, “Alma Imortal”.
Com o intuito de compartilhar e trocar perspectivas, Hariel explorou como os princípios filosóficos que permeiam a concepção do álbum, oferecendo aos presentes uma compreensão mais rica, subjetiva e sensível da sua jornada criativa.
Num cenário onde muitos pisavam pela primeira vez nos corredores da Unicamp ou em uma universidade, uma variada gama de corpos, composta tanto por professores, alunos quanto por visitantes, preencheu o auditório. Entre essas almas, encontravam-se aqueles que eram admiradores fervorosos do trabalho do artista, apaixonados pelo universo do funk, ou simplesmente curiosos diante da proposta da “filosofia do funk”, título da aula aberta.
Mais do que isso, reflito sobre as ideias presentes nas letras de MC Hariel. Na música “Milionários”, o verso “Trago no bolso uma grande vantagem, inteligência é prata, o silêncio é ouro” destaca a valorização da inteligência, comparando-a à prata, e ressalta a importância do silêncio estratégico, equiparando-o ao ouro.
Já na canção “Decepção”, Hariel canta “Decepção é fome e barriga vazia/ Refletem nas notas do histórico escolar/ O aluno pensa só em melhorar um dia/ Nota azul só de cem, as outras deixa pra lá”. O verso expressa uma conexão profunda entre as decepções vivenciadas, a carência material simbolizada pela fome, e seu impacto nas realizações acadêmicas, evidenciadas pelas notas do histórico escolar. Diante da urgência da fome e da falta de dinheiro, o aluno dedica seus esforços para a aquisição financeira – “nota azul só de cem” –, em vez de perseguir a nota azul (acima da média) no boletim escolar. Longe de dizer que o aluno está errado, Hariel aponta para as circunstâncias financeiras que influenciam a trajetória escolar dos sujeitos e das sujeitas periféricas, que as fazem se dedicar majoritariamente ao trabalho em detrimento do estudo.
Ambas as letras expressam uma leitura crítica em relação à realidade social experienciada pelo artista e pela coletividade na qual está inserido. Ao abordar o valor da inteligência e do silêncio e a situação escolar da população periférica, Hariel tece reflexões críticas a partir de suas vivências enquanto sujeito periférico, utilizando o funk como veículo de comunicação e transmissão de conhecimento.
Como alguém que nasceu e cresceu na periferia, tenho pensado sobre carregar, no bolso, uma notável vantagem. Essa vantagem vem das ruas, das experiências vividas, dos desafios enfrentados, e da criatividade necessária para sobreviver em um ambiente frequentemente desassistido pelo Estado, como as favelas brasileiras. Além disso, a aula aberta evidencia algo crucial: a partir da nossa condição como sujeitos periféricos, temos o direito de ocupar qualquer espaço que desejarmos. Seja no palco, entoando canções, ou em uma universidade, conduzindo uma aula aberta, a mensagem é clara: podemos e devemos reivindicar nosso lugar, desafiando limites preestabelecidos e quebrando barreiras com a força da nossa expressão.
Enquanto uma cultura negra e periférica, o funk tem uma forte marca da oralidade, uma tecnologia milenar e ancestral. Suas canções não apenas servem para entreter, mas também contam histórias, revelam realidades e oferecem uma janela (assim como a cultura hip-hop) para compreender a vida nas periferias.
O funk, ao se inserir em uma tradição oral, não apenas representa as realidades das periferias, mas também se torna uma ferramenta para moldar essas realidades, potencializando as vozes das comunidades marginalizadas e ampliando sua presença na narrativa cultural, proporcionando acesso à informações e diferentes perspectivas.
E sim, é válido afirmar que o funk pode ser uma ferramenta de transmissão e produção de conhecimento. A distinção desse entendimento reside no fato de que, ao depararmos com a palavra “intelectual”, somos propensos a conjurar a imagem tradicional de um homem, frequentemente branco, trajando terno e gravata, que trilhou os caminhos acadêmicos absorvendo ideias abstratas. Essa representação, entretanto, acaba por excluir e silenciar intelectuais que não se encaixam nesse estereótipo, especialmente aqueles de origens negras e periféricas, como muitos de nós. Esse estigma contribui para a invisibilidade dos nossos pensadores e sábios, cujo conhecimento se fundamenta na matéria-prima mais fundamental da existência humana: a vivência e a oralidade.
Dessa maneira, a concepção de intelectual transcende a imagem de alguém que lida exclusivamente com conceitos distantes da realidade. Ela abraça também aqueles que, a partir de suas experiências de vida e realidades individuais, formulam conceitos e teorias. O verdadeiro intelectual não se limita à abstração, mas incorpora a práxis em sua construção de conhecimento, desafiando a dicotomia entre teoria e realidade.
Autoras como Conceição Evaristo, Grada Kilomba, Sueli Carneiro, Ana Lúcia Silva, entre outros destacam que a periferia muitas vezes debate questões que o centro ainda não conseguiu elaborar. Esse posicionamento coloca-nos à frente, destacando-nos como agentes ativos na construção do pensamento social contemporâneo.
A aula de MC Hariel é um exemplo vivo desse fenômeno, desafiando preconceitos ao revelar que a contribuição intelectual não está restrita à formação acadêmica tradicional. Sua jornada, marcada pela não conclusão do ensino básico escolar, evidencia que a sabedoria não se limita a diplomas, mas se manifesta também nas letras de funk, erguendo vozes e perspectivas que merecem ser legitimadas e celebradas.
***Este conteúdo é uma coluna de opinião que representa as ideias de quem escreve, não do veículo.