A Constituição diz que todo mundo tem o direito de viver com dignidade, mas o que está escrito não se realiza no dia a dia de quem mora na favela. A desigualdade social afeta saúde, educação, alimentação e moradia, e também sabota a diversão e a cultura — dois fatores importantes para o bem-estar.
Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, a população favelada não tem acesso às condições ideais de cultura e lazer. Na avaliação da pesquisadora Rafaela Albergaria, especialista em direitos humanos e co-autora do livro Mobilidade Antirracista (Ed.Autonomia Literária), a “péssima” mobilidade urbana carioca confina os moradores em seus próprios territórios e ações simples, como ir à praia, se tornam eventos raros e caros. O deslocamento é complicado e os gastos são maiores.
PIOR DO BRASIL No relatório global sobre transporte público de 2020 (estudo feito pelo aplicativo Moovit), a mobilidade no Rio de Janeiro foi considerada a pior do País. Os dados estão neste link
“A gente vê esse empecilho no preço das passagens e nos horários em que os veículos são oferecidos”, diz Rafaela. “Quem pega trem não pega só o trem. Na maioria das vezes, usa metrô e ônibus também. E esse custo elevado limita a circulação dessas pessoas nos bairros que têm alto padrão de vida e de lazer, como a região praiana do Rio de Janeiro”, explica.
Outro ponto ressaltado pela especialista está nos horários do transporte público, organizados em grades e escalas que seguem a lógica do trabalho. Menos transporte para o passeio afasta o lazer dos moradores nas favelas. Na avaliação de Rafaela, isso mostra que as pessoas são vistas como mercadoria, e não sujeitos que têm direito a descanso e diversão.
SÓ DE MANHÃ O domingo na praia para quem embarca no trem em algum ponto do ramal de Belford Roxo acaba cedo: o último trem para voltar pra casa sai às 13h. Esse ramal passa por Jacarezinho, Pavuna e outros territórios de maioria negra e de baixa renda
Para a educadora social Letícia Ludovico, a restrição de mobilidade e acesso inviabiliza novas perspectivas, outras realidades, experiências diferentes. Desestimula a criatividade. “O lazer é bem mais do que um simples período de diversão e de descanso. É nele que a pessoa descobre gostos e peculiaridades. Ela se descobre”, afirma. “A ausência desses pontos causa impactos extremamente negativos que transpassam a individualidade e atingem a coletividade.”
UMA BOA IDEIA No Complexo do Alemão, zona norte da cidade, a iniciativa Surf no Alemão tenta romper o ciclo vicioso da mobilidade frágil e que prejudica experiências das comunidades. O projeto do ativista Wellington Luz promove uma espécie de intercâmbio em que as crianças e os jovens são levados até a região praiana da capital carioca. “Nosso objetivo principal é proporcionar lazer e cultura a todos e, além disso, mostrar que a praia é pública e é de todos. Infelizmente, algumas pessoas ainda acham que o favelado não pode ir até lá”, diz Luz. Em atividade desde 2011, o projeto tem recursos da Lei de Incentivo ao Esporte e recebe apoio dos moradores e doações. Desde o início da pandemia os gastos tiveram de ser reduzidos pela metade e o Surf no Alemão busca novos parceiros para continuar na ativa.
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