A cada play no rec [expressão usada em estúdios de gravação], a rapper Cristal Rocha, de 19 anos, transforma em rima suas experiências de mulher negra e artista em Porto Alegre. E assim como um dos versos da canção Deus Dará — parceria de Cristal com o rapper mineiro Djonga — fala em apostar “tudo que tem nessas linhas”, a cantora investe suas batidas musicais em uma construção coletiva.
Inserida na cultura do hip-hop desde a infância por incentivo de sua mãe, Cristal atribui suas conquistas a essa base. “Aprendi a ser muito apegada à família, a me preocupar, sentir as dores, comemorar conquistas. Cresci nessa dinâmica em casa e nos churrascos no pátio do meu bisavô”, lembra. “Minha família é presente no meu trampo e na minha escrita. Tudo que eles são reflete em mim.”
É nesse pilar colaborativo e familiar que a voz e os ideais da moradora do bairro Vila Nova, na zona sul de Porto Alegre, alcançam mais de 51 mil ouvintes mensais na plataforma Spotify. A faixa de estreia, Ashley Banks, já passou a marca de um milhão de acessos. Os resultados puseram Cristal na disputa pelo Prêmio Genius Brasil em 2020, na categoria revelação. Além de Djonga, ela já trabalhou com artistas renomados, a exemplo de Tasha e Tracie, niLL e Devastoprod.
Ashley Banks [referência ao personagem da série Um Maluco no Pedaço, do ator Will Smith]) foi produzida em casa com a composição instrumental do seu primo Maurício, mais conhecido como MDN Beatz. Esse trabalho precedeu o primeiro EP, Quartzo (2021). Contratada pelo selo Natura Musical, que desde 2005 investe em novos talentos, o primeiro álbum da artista deve sair em 2023.
Diversidade — Apesar da ressonância de seu trabalho, Cristal sente que parte do público e outros artistas subestimam seu talento, seja por ser “jovem demais”, seja por ser mulher na cultura predominantemente masculina. Em sua visão , a ideia de “rap feminino e rap masculino” é uma jeito de diminuir a atuação das rimadoras. “Neste 2022, completo seis anos na arte e sempre foi muito difícil ser a mais nova nos espaços”, diz. “A idade influencia o julgamento e existem etapas em que meninas negras como eu vivem fora do esperado de uma vida normal para adolescentes. São responsabilidades batendo na porta, crescemos na marra. Muitas vezes fiquei chateada por me sentir subestimada, mas não deixei que esse pensamento me vencesse.”
Questões de gênero e preconceito de idade não são os únicos desafios. Cristal reconhece que, ainda que seu trabalho tenha extrapolado fronteiras, o Brasil deixa a desejar (também) na diversidade regional. Nesse sentido, espera jogar luz na cena rapper do sul do Brasil que, segundo ela, não tem a visibilidade de São Paulo e Rio de Janeiro. “Sinto uma certa exclusão, que chega a ser naturalizada, nas mídias, no público e nos artistas. Tem muita coisa pra mudar, e quero poder ver mais artistas gaúchos. Não quero ser a única. Como digo na música Rude Girl, migalhas de representatividade não nos tiram da fome.”
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