Escritoras refletem sobre a literatura produzida por mulheres negras e periféricas e defendem a importância de feiras, saraus, coletivos e editoras independentes que, juntos, promovem movimentos políticos e de afeto
A escritora e jornalista Esmeralda Ribeiro, de 64 anos, completa uma trajetória de 40 anos na literatura em 2022. Sua escrita nasceu da dor e do luto vivido pela morte de seu pai. Esmeralda tem uma história marcada pela atuação em movimentos de combate ao racismo e de fomento à cultura literária negra. Além de cofundadora do coletivo de autoras pretas Flores de Baobá, ela é uma das coordenadoras da organização sem fins lucrativos Quilombhoje Literatura, que estimula a leitura e dá visibilidade ao trabalho de escritoras e escritores afrodescendentes. Desde 1999, a autora edita os Cadernos Negros, uma série literária criada há 44 anos e que valoriza a experiência da escrita afro-brasileira.
Desde a década de 1980, Esmeralda escreve sobre diversos temas, sempre provocando reflexões a respeito da literatura produzida por mulheres negras. “Na época em que não havia redes sociais e nem nada, tínhamos poucas notícias de escritoras negras. Eram mais homens negros escrevendo sobre nós, uma terceirização dos nossos sentimentos, das nossas vontades. Só que a gente quer ter voz, não queremos ser silenciadas, queremos falar sobre o que gostamos, sobre os nossos corpos, as nossas vivências e o nosso olhar feminino”, afirma. “O copo está meio cheio, a gente gosta do copo cheio. Muitas mulheres estão escrevendo, temos as meninas do slam. São potentes, fazem contos, poemas, de uma beleza e de uma profundidade. Têm vários saraus e trabalhos que acabam culminando na publicação de livros. As produções existem, mas precisamos ampliar a visibilidade nas bibliotecas, nas escolas, nas secretarias de educação.”
Esmeralda defende maior divulgação nos espaços públicos de uma literatura periférica com recorte de gênero e raça. Uma escrita que, a partir do olhar e das vivências da quebrada, promove reflexões universais. “A escrita te faz refletir um monte de coisas e também questionar onde você está, o governo, por que não melhora o transporte público, por que não tem mais equipamentos culturais. Mas vai para além disso. A escrita é universal, transforma vidas, fala de amor, de terra, de moradia, de relacionamentos”, ressalta a autora, ao lembrar que a literatura atravessa muros e fronteiras.
Mulheres e palavras — A própria Esmeralda é inspiração para muitas escritoras de várias gerações. Não por acaso ela é a autora homenageada na terceira edição da Festa Literária Noroeste (Flino), que termina no próximo domingo, dia 13 de novembro, e ocorre em vários endereços da região noroeste da capital paulista. Neste 2022, o tema é “Mulher: Palavras Periferias”. O evento é uma articulação de bibliotecas, movimentos e agentes culturais de bairros como Perus, Jaraguá, Parada de Taipas, Morro Doce e Pirituba.
“Em 2020 realizamos a festa online, por conta da pandemia, foi um super desafio. Em 2021, fizemos um esquema híbrido. Com as coisas melhorando um pouco, ainda com desafios, estamos realizando a primeira festa presencial e, para a nossa surpresa, batemos o recorde de 221 inscrições”, detalha a jornalista Jéssica Moreira, uma das organizadoras.
Autora de Vão: Trens, Marretas e Outras Histórias (2021) e Chão Vermelho (2021), entre outros livros, Jéssica fala da importância de celebrar escritoras em vida. “Vemos hoje Maria Firmina dos Reis [1822-1917] sendo homenageada tardiamente, entre outras mulheres, mas vejo nos últimos anos uma expansão da produção feita por mulheres negras e periféricas, muito puxada por coletividades como o Sarau das Pretas e o Slam das Minas”, pontua. Para Jéssica, é importante reconhecer, ainda, o papel das editoras independentes, além de trabalhos promovidos de forma autônoma por mulheres que tiveram que encontrar caminhos para visibilizar suas obras.
Esmeralda, Jéssica e outras participantes da Flino trazem em sua arte reflexões de seu tempo, o tom de denúncia e a construção de uma literatura alinhada à realidade político-social brasileira. Elas também promovem afeto em encontros que unem gerações. Um “quilombo literário”, como Esmeralda gosta de chamar.
Poeta, slammer, MC e pessoa com deficiência, Milca Samara, conhecida pelo nome artístico ‘Aflordescendente’, também entende festas literárias como atos políticos e afetivos. Moradora do Jardim Zaíra 4, em Mauá (SP), Flor Descendente fala sobre como o racismo e a discriminação na sociedade brasileira afetam a sua produção literária. “São questões que me atravessam o tempo todo. Sinto falta de escrever só sobre amor, por exemplo. Sobre esperança de um futuro, sobre coisas simples do dia a dia. Mas não há como fugir desses atravessamentos”, diz.
Sabedoria vinda das matriarcas
sou de periferia sei pisar em qualquer estrada.
Mãe dizia: não se meta em fita errada. Sobreviva à elite e volte viva pra quebrada…
(Trecho de poema da slammer Aflordescendente)
Para Ave Terrena, mulher trans, dramaturga, poeta e diretora teatral, a arte é lugar de encontros e encruzilhadas. “Esses lugares de encontro trazem à tona visões de mundo e vozes que ficaram abafadas por muito tempo. A poesia tem esse poder, como quando narro minhas experiências como mulher e travesti. Essas periferias que são geográficas, mas também são centros em si, compõem todas essas histórias. Quando narro em primeira pessoa, por exemplo, movo estruturas e inauguro espaços. São lugares artísticos, políticos e pedagógicos.”
Veja também:
A programação da Flino para sábado e domingo, os dois últimos dias do evento
12 de novembro (sábado)
10h | Oficina Poesia na lata | Local: Biblioteca Pública Municipal Brito Broca
10h | Contação de histórias: A Vida de Esmeralda Ribeiro e A Esmeralda que Habita em Cada um de Nós | Local: Biblioteca Pública Municipal Érico Veríssimo
10h | Oficina Baque das Manas pras Minas, Manas e Monas | Local: Espaço Cultural Morro Doce
14h | Lançamento de Livro Erineide Oliveira e Sonia Bischain | Local: Biblioteca Pública Municipal Brito Broca
14h | Oficina Cadernos para Esmeralda | Local: Espaço Cultural Morro Doce
20h | Sarau da Brasa | Local: Samba do Congo
21h | Luiza Akimoto | Local: Samba do Congo
Noite toda | Feira de Livros | Local: Samba do Congo
13 de novembro (domingo)
Dia todo | Feira de Livros | Local: Ocupação Artística Canhoba
16h | Teatro e Dança em A Dita Consequência a Duras Penas de Ontem e Hoje | Local: Ocupação Artística Canhoba
17h | Lançamento do Livro Dramaturgias I — Grupo Pandora de Teatro
17h | Lançamento do Livro Vão de Jessica Moreira | Local: Ocupação Artística Canhoba
18h | Show Ladies Sing The Blues | Local: Ocupação Artística Canhoba
20h | Show Indaíz | Local: Ocupação Artística Canhoba
Reportagem maravilhosa! Muito bom ver como as pessoas das regiões periféricas estão fazendo ecoar suas vozes de maneira cada vez mais ampla, conscientizando a sociedade a respeito dos problemas sociais que ainda nos assolam. Parabéns ao Estadão por dar esse espaço tão necessário e importante a essas pessoas.
Que matéria linda e necessária! Que possamos cada vez mais ter espaço para nossas escrevivências. Voz nos temos!
Excelente matéria!
Que matéria mais contundente, trazendo ao público depoimentos de escritoras de referência, das quais eu tenho o maior prazer de estar ao lado. As Festas Literárias que abrem a possibilidade de diálogos incríveis como os da FLINO estão transformando a nossa relação com a literatura!