“Você não é filho do Caroço?” — Sim, sou eu. “Não lembra de mim? Tem uma chupeta e um copinho seu lá em casa.” Foi a partir deste diálogo entre o cineasta Daniel Fagundes, de 35 anos, e Edite Marques da Silva, de 79, que se desenrolou uma série de memórias e reencontros entre os dois.
Caroço era o apelido do pai de Daniel, e Edite era uma frequentadora assídua da casa deles. “Ela é amiga da minha família desde o final da década de 1970, quando meu pai emprestava seu caminhão para comícios no Jardim Miriam”, lembra o cineasta. Depois, nos anos de 1980, Edite mudou-se para Piraporinha, um bairro na zona sul de São Paulo, distrito de M’Boi Mirim. Foi lá que Daniel nasceu. “Cresci ouvindo poemas e canções nos fundos da casa dela e de suas irmãs. Me lembro, como se fosse hoje, da alegria que eu ficava quando meus pais diziam que íamos na casa das tias, como nós chamamos até hoje as irmãs Edite, Izabel e Cleonice”.
Nascida no município mineiro de Pirapora, foi em São Paulo que Edite se envolveu em movimentos sociais, políticos e sindicais, além de atuações em ações culturais e iniciativas em prol dos coletivos populares. Em 1980 começou a perder a visão por um problema de saúde, mas não deixou de lado o prazer pela literatura.
No bairro em que mora, conheceu o Sarau da Cooperifa, onde tem uma cadeira cativa no bar do Zé Batidão toda terça-feira, dia de sarau. Ela também frequenta outros saraus e encontros literários da região.
Daniel se interessou e começou a planejar a ideia de fazer um filme com o protagonismo da poeta. Depois de gravações sozinho, criou um financiamento coletivo para custear gastos para finalizar a produção. Conseguiu, gravou e o filme O Olhar de Edite inicia, neste novembro de 2021, seu percurso pelas periferias de São Paulo.
O cineasta diz que a viagem de Edite para Pirapora (MG) foi um dos momentos mais importantes na produção da obra. “Conseguimos fazer a ponte para demonstrar as raízes e o jeito que ela tem, como a ligação com a natureza”, diz. Nesse retorno, ela também entrou no Rio São Francisco, lugar dramático para a família depois da morte de um irmão por afogamento, e encontrou uma cantora local, com quem gravou algumas cenas, situações mostradas no filme.
Para Daniel, falar de Edite é mostrar o protagonismo dela na periferia. “É contar sobre a importância dela como integrante da Casa de Cultura do M’Boi Mirim, como poeta na Cooperifa, uma mulher de luta e que já tinha caminhada política e cultural”, afirma.
Ainda segundo ele, a obra aproxima os jovens de histórias de pessoas mais velhas que lutaram por uma vida melhor aos mais pobres. “Possibilita ver nos mais velhos a continuidade da luta, num momento como este, é importante ter as histórias vivas”.
“A gente sabe que a história dos mais velhos é contada, na maioria das vezes, depois que morrem. É uma grande honra contar ainda em vida, espero que possa inspirar outras pessoas. Ela tem uma ligação com a juventude, espero que eles possam ver nos mais velhos a luta contra o racismo e o machismo, por exemplo”
Daniel Fagundes, cineasta
Após exibição do filme na 4ª edição do Festival Internacional de Cinema Pedra Azul, no Espírito Santo, o diretor ganhou menção honrosa como a obra mais assistida. Depois disso, a expectativa do cineasta é alcançar mais público, sobretudo na região em que mora Edite e onde está a maioria dos colaboradores do filme. “Agora é fazer com que a voz e a história chegue para tantas mulheres negras da periferia, senhoras com histórias de lutas antigas e que não foram ouvidas”, pontua.
NESTE FIM DE SEMANA
Neste domingo (21/11), o filme será exibido na Casa de Cultura do M’Boi Mirim, às 16h. A presença de público será limitada por conta da pandemia e pela quantidade de idosos no local. Os interessados devem mandar mensagem de interesse neste link.