Sou favelada e cria de um dos maiores conjuntos de favelas do Rio de Janeiro, o Conjunto de Favelas da Maré, com 16 favelas e mais de 140 mil moradores, localizado na zona norte do Rio. Aqui me coloco também como comunicadora comunitária, jornalista e investigadora das próprias violações cotidianas que atravessam a minha vida e a vida dos meus. Práticas da colonização e da ditadura civil-militar como desaparecimento forçado, revistas, remoções e assassinatos, continuam ainda hoje.
Nos mais de 20 anos de cobertura jornalística de operações policiais na Maré e em várias favelas do Rio, de análises de dados, contextos e denúncias sobre as mais diversas violações de direitos humanos, nunca consegui perceber uma melhora no que se refere ao direito à segurança pública dentro das favelas e periferias no Rio ou em outras partes marginalizadas do país.
Na verdade, cada vez mais denúncias são produzidas sobre práticas militares – ordenadas e legitimadas de governo a governo – dentro desses espaços empobrecidos de moradia. Práticas que muitas vezes lembram os depoimentos dos perseguidos políticos que sobreviveram à ditadura civil-militar. Com isto, me pergunto: as favelas e periferias se livraram da ditadura civil-militar? Afirmo que há nitidamente uma diferença de comportamento na distribuição de direitos dentro e outra fora das favelas e periferias do Rio e do Brasil.
As polícias e as leis ainda funcionam a partir do falso discurso de combate à guerra às drogas, o que ainda hoje legitima socialmente e midiaticamente o assassinato e a desumanização da juventude negra e pobre favelada. Ou seja, a histórica criminalização da pobreza, a marginalização e o racismo cotidiano que atravessam a realidade da favela continuam mesmo depois de 60 anos do golpe militar no Brasil. Fato é que práticas estatais como estas não se originam na ditadura civil militar, mas sim na escravização negra e na colonização do país.
Hoje, em 2024, mesmo que tenhamos mudanças significativas na nomenclatura das favelas do país, pois, pela primeira vez, depois de décadas, deixamos de ser significados e considerados aglomerados subnormais, como éramos classificados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ainda não vimos mudanças concretas na vida favelada. Dados revelados em fevereiro deste ano pela organização não-governamental, Iniciativa de Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR), especializada na pauta de segurança pública, dão conta que, em apenas um dia deste ano, mais de 10 favelas e periferias do Rio de Janeiro sofreram com operações policiais. De acordo com nota pública divulgada pela organização: “As polícias realizam operação em mais de 13 favelas, afetando 62 escolas, mais de 20 mil alunos, além do transporte público e serviços de saúde”.
Importante chamar atenção que durante um dia de operações policiais como estas ocorridas em 13 favelas, toda a vida de uma favela é interrompida. Ou seja, a juventude negra e pobre perseguida pelas polícias é assassinada, e a vida material da favela também. Em dias como estes, postos de saúde, escolas e comércios são fechados, atrapalhando o trabalho e a economia auto-organizada da favela. São dias em que não é possível sair e entrar para trabalhar. Além disso, militares invadem as casas, há roubos de pertences dos moradores e objetos de trabalho são quebrados. Moradores apanham, outros são colocados dentro dos carros blindados das polícias, os chamados caveirões, e acabam mortos ou desaparecidos.
A histórica prática colonizadora e ditatorial que não acabou nas favelas cariocas – Voltando um pouco na história, nos anos de 1990, poucos anos depois do fim da ditadura civil-militar no país, policiais militares passaram a receber a chamada gratificação “faroeste”, em que ganhou destaque o dispositivo legal conhecido como “auto de resistência”. De acordo com a publicação: Auto de resistência: A omissão que mata, lançada em 2019: “presente desde a época da ditadura militar, tal classificação administrativa passou, progressivamente, a ser empregada para designar as mortes resultantes das ações policiais e, durante o governo Marcelo Alencar, seu uso chegou a ser estimulado por uma remuneração concedida a policiais militares intitulada ‘premiação por bravura’ ou ‘gratificação faroeste”. Não, por acaso, foi neste período de 1990 que foram cometidas pelas polícias militares e civis, inúmeras chacinas nas periferias e favelas de todo o Rio de Janeiro.
Além do atraso na questão no direito à segurança pública dentro das favelas, remoções e despejos também ocorrem desde aquela época. De acordo com matéria publicada no Dicionário Marielle Franco, só entre 1962 e 1974, mais de 140,000 pessoas foram removidas de suas casas, em especial nos bairros que se tornavam mais atrativos para o mercado imobiliário, como a Lagoa Rodrigo de Freitas e o Leblon. Se a política de remoções sistemáticas foi iniciada com o então governador Carlos Lacerda—um dos principais articuladores civis do golpe—ainda antes da ditadura, foi em 1968, com a criação da Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Rio de Janeiro (CHISAM), órgão federal subordinado ao Ministério do Interior, que a ditadura passou a dirigir o processo, garantindo recursos, força política e o uso irrestrito da repressão para viabilizá-lo.
Décadas depois, entre 2009 e 2016, já em tempos de uma dita democracia brasileira, a mesma política de remoção forçada foi realizada dentro das favelas e periferias do Rio. Mais de 50 favelas sofreram com o processo de remoções e mais de 10 ocupações foram despejadas em todo o Rio. Além disso, como mais uma forma de controle de uma população negra e favelada, foram implementadas, em outras 38 favelas do Rio, as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) que estiveram nelas por 10 anos. Foi durante esse período, que nestas favelas, houve também o aumento dos desaparecimentos forçados.
De acordo com o relatório parcial da pesquisa realizada pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) e do Disque Denúncia (100), só na Baixada Fluminense, foram registrados 361 denúncias de desaparecimentos forçados entre 2016 a 2020, com cerca de 46% do total de casos. Na cidade do Rio, que tem quase o dobro da população, o quantitativo foi de 417 no mesmo período.
Ainda durante os megaeventos esportivos no Brasil, na Copa do Mundo, em 2014, a favela da Maré foi invadida pelo exército brasileiro e ficamos sob Garantia de Lei e Ordem (GLO) por um ano e cinco meses. Crianças, adolescentes e adultos foram presos e responderam pelo Tribunal Militar. Aconteceram remoções, prisões, assassinatos e invasões às casas, além de tanques de guerra que cercavam nossas ruas e até mesmo ficavam na porta das escolas. Mídias comunitárias e comunicadores foram censurados por apenas denunciarem a cruel realidade. Mais uma vez, questiono por que a minha favela foi escolhida para ser novamente um laboratório de uma política de militarização e controle? Por que a democracia brasileira ainda não enxerga a favela e periferia como parte da cidade, por que nossos direitos ainda não são garantidos? Nós queremos também viver essa plena democracia brasileira, mas eu ainda não a experimentei.
Vale destacar ainda que, recentemente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva – uma representação política e histórica do nosso país – orientou que não houvesse manifestações em memória contra os duros anos da ditadura civil-militar no Brasil. Silenciar um movimento tão importante como este significa não avançar na luta pela reparação daquelas pessoas que sofreram naquele período. Além disso, não se manifestar neste ano, que completa 60 anos da ditadura civil-militar no Brasil, é não avançar no cumprimento por uma democracia plena e que inclua o direito à vida e aos direitos humanos da população negra e favelada de nosso país.
———–
Gizele Martins – Jornalista (PUC-Rio), Comunicadora comunitária, cria da Maré. Mestre em Comunicação (UERJ) e Doutoranda em Comunicação (ECO-UFRJ). Escritora do livro: Militarização e Censura: A luta pela liberdade de expressão na favela da Maré.
***Este conteúdo é uma coluna de opinião que representa as ideias de quem escreve, não do veículo.