A letra da canção Dois de Fevereiro, composta por Dorival Caymmi e gravada por Maria Bethânia em seu álbum de 1969, presta homenagem a Iemanjá — hoje é dia dela, da divindade africana, uma das mais populares do Brasil. Na música, a rainha do mar diz aos devotos que tenham calma enquanto esperam que ela atenda a seus pedidos.
Eu mandei um bilhete pra ela
pedindo pra ela me ajudar
Ela, então, me respondeu
que eu tivesse paciência de esperar
Mas, no Brasil de 2022, lideranças de terreiros de religiões de matriz africana sabem que aguardar as mudanças pode ser o limite entre sobreviver ou desaparecer diante do crescimento de atos de intolerância que expressam o racismo religioso.
Para dirigentes como pai Denisson D’Angiles, sacerdote do Instituto Centro Espiritualista de Umbanda Estrela Guia, os ataques escancaram as raízes racistas e a disputa territorial no Brasil em crescimento nas últimas décadas, a partir da doutrina neopentecostal. “Por um lado, o racismo e a discriminação, que remontam à escravidão e que, desde o Brasil colônia, rotulam tais religiões pelo simples fato de serem de origem africana.”
Ainda de acordo com Denisson, a ação de movimentos neopentecostais que nos últimos anos se validam de mitos e preconceitos para demonizar e insuflar a perseguição a umbandistas e candomblecistas também colabora para o aumento do racismo religioso no país.
Apenas em 2021, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos recebeu 586 denúncias de intolerância religiosa, um crescimento de 141% em relação a 2020. Cenário que se reflete em marcas como as registradas no Terreiro de Candomblé das Salinas, em Pernambuco. No início deste ano, foi incendiado e teve objetos ritualísticos quebrados.
Ações como essa têm se tornado rotina e preocupado cada vez mais lideranças da umbanda e do candomblé, a partir do desdobramento de denúncias que apontam a união entre grupos paramilitares e neopentecostais na disputa por territórios e consciências.
Em janeiro de 2020, imagens de policiais cariocas com armas em punho e cruzes de madeira circularam nas redes sociais para ilustrar a investigação da Polícia Civil sobre um batismo realizado por criminosos evangélicos no Complexo de Israel, um conjunto de favelas da zona norte do Rio de Janeiro.
Ialorixá da Comunidade de Renovação Ilê Asè Omiṣọlà, de Mairiporã, em São Paulo, Ana Paula Santos, 34, acredita que o medo leva a um processo também de destruição da cultura de terreiro. “Isso evidencia uma dualidade perversa. Ao mesmo tempo em que embranquece e mercantiliza nossa fé, repudia e busca exterminar nossos grupos. Essa vem sendo uma poderosa arma de apagamento de nossa identidade, tradições e construções políticas e sociais”, aponta.
Denisson lembra ainda que o racismo religioso utiliza como base o aprofundamento da participação nas estruturas do Estado, como ficou evidente na nomeação do ministro André Mendonça para o Supremo Tribunal Federal após indicação do presidente Jair Bolsonaro (PL). “A nomeação do ministro terrivelmente evangélico não faz valer o papel da laicidade do país e aumenta ainda mais a carga negativa que tentam colocar sobre nós”, diz Denisson.
Terreiro e Estado — Mesmo com as perseguições, a atuação das comunidades religiosas de matriz africana, que têm a resistência como herança, segue fundamental para mudar a realidade de dezenas de famílias.
Em Interlagos, bairro periférico de São José dos Campos (SP), o Terreiro de Umbanda Senzala dos Pretos Velhos conduz um projeto que completa um ano em 2022 com a entrega de aproximadamente 700 cestas básicas à comunidade onde está inserido.
Madrinha da casa e uma das gestoras do projeto, Marília Teles de Souza, explica que ser umbandista não é pré-requisito para receber o auxílio, mas que as cestas devem ser obrigatoriamente retiradas no terreiro, como forma de mudar a visão das pessoas sobre a religião. “O lado espiritual é muito importante, mas como vamos falar sobre ter fé para quem está de barriga vazia?”, questiona.
Trabalho semelhante é realizado pelo grupo de Denisson na capital paulista. “Diariamente distribuímos, em média, 1.500 refeições pelas ruas de São Paulo, atuando diretamente com pessoas de vulnerabilidade social que estão em locais como a Cracolândia, a Praça da Sé, o Pátio do Colégio, a Praça Princesa Isabel. No pico da pandemia de covid-19, éramos, junto com o padre Júlio Lancellotti, os únicos a sair pelas ruas.”
O reconhecimento do trabalho, habitualmente associado a outras vertentes religiosas, rendeu à mãe Kelly D’Angiles, em 2021, o prêmio Dom Paulo Evaristo Arns de Direitos Humanos.
Espaço de saúde — Psicólogo e babalorixá do Ilé Asè Odé Omi, na Vila Maria, bairro da zona norte da capital paulista, Marcos Delaji de Logun Ede aponta ainda o papel dos terreiros como lugares de saúde e defende parcerias com estruturas do Estado. “O terreiro, como espaço sagrado, mas também de resistência político-social, é um território de acolhida em todas as nuances. Trata da saúde, da educação, dos conflitos familiares, está presente na alimentação das famílias. Acaba se tornando uma porta de entrada das minorias e do entendimento de suas demandas”, comenta.
Segundo Marcos, se fossem vistos com a importância e o alcance que têm, os espaços poderiam ter ações com redes de atenção como o Centro de Referência de Assistência Social. Para isso, porém, seria necessário iniciar a discussão sobre como garantir o cumprimento da Constituição brasileira e a proteção da livre expressão religiosa.
“A informação é a principal ferramenta para mudar essa realidade. A divulgação dos casos de intolerância é fundamental para que o sistema de justiça e de proteção aos direitos humanos executem a lei e construam políticas públicas que transformem nossa realidade”, reforça o pai Denisson D’Angiles. “É preciso chamar a atenção para o problema e nacionalizar o debate, além de pressionar a União, os estados e os municípios. Intolerância religiosa é crime.”
Assistente social e Ialorixá do Ilê Oba Àse Ogodo, localizado em Eldorado, bairro do extremo sul de São Paulo, a mãe Luciana de Oyá ressalta que à frente de qualquer transformação deve estar a educação. “A primeira e principal solução é a educação. A educação no sentido de possibilitar que as pessoas conheçam o real processo histórico da escravidão e as crenças e religiões de matriz africana”, ressalta. “Que nossos deuses sejam vistos como deuses e não como demônios. Isso passa pela implementação e pela materialização da Lei 10.639 (2003), instituída há quase vinte anos e fruto de uma luta do movimento negro que ainda é ignorada nos espaços escolares.”