Nos primeiros dias de governo Bolsonaro já conseguimos visualizar uma das principais pautas que seriam defendidas. Naquele primeiro discurso do finado Ministério dos Direitos Humanos à época, de que “meninas usam rosa e meninos azul”, tivemos um aviso bem direto de que atacar pessoas trans seria algo feito em todas as esferas. Nunca foi sobre roupas, sempre foi sobre pessoas.
Mas ainda estamos lutando contra retrocessos criados por esse governo, como a criação do “novo RG“, que, infelizmente, foi mantido pelo atual governo federal.
O problema não é a unificação do número do documento em todas as unidades da federação por meio do CPF (Cadastro de Pessoas Físicas). Na verdade essa ideia é boa, já que com apenas um documento podemos unificar informações como o Título de Eleitor, a numeração da Carteira de Trabalho e Previdência Social, a Carteira Nacional de Habilitação, o NIS/PIS/Pasep, entre outros.
A principal questão está na inclusão do campo “sexo” e os campos “nome” e “nome social” estarem juntos nesse documento. Se isso realmente acontecer, pessoas trans, travestis e não-binárias, que ainda não retificaram seus documentos, serão constrangidas e humilhadas todas as vezes que precisarem apresentar o documento.
Se você está se perguntando o motivo de isso ser uma violação, eu te explico. Até 2019, para uma pessoa trans retificar seus documentos, era necessária uma batalha judicial. Essa pessoa precisava contratar um advogado, entrar na justiça e depender da boa vontade do juiz que recebesse o caso. Alguns magistrados autorizavam a alteração do nome na certidão de nascimento, mas negavam o direito de retificar o “sexo”. Outros não autorizavam nada.
Aí, há quatro anos, o STF (Supremo Tribunal Federal) entendeu que isso era uma violação contra a vida das pessoas trans, liberando, então, a retificação do nome e do “sexo” das certidões de nascimento diretamente nos cartórios. Mas isso ainda é pago e muitas pessoas trans não conseguiram conquistar esse direito. Outras se sentem contempladas com o “nome social”, um direito conquistado em 2016.
Mesmo quando retificamos nossos documentos, fazemos uso de hormônios e cirurgias, ainda é muito difícil obter o respeito perante a sociedade. Eu já retifiquei meus documentos desde 2020, mas, até hoje, ainda preciso brigar para ser respeitado por quem eu sou. Sem o acesso a nossa identidade, nosso nome e nosso gênero, deixamos de ser vistos como seres humanos dignos de respeito.
É isso que esse modelo do “novo RG” está propondo: violentar e desrespeitar a identidade de todas pessoas trans que ainda não retificaram seus documentos, ignorando um direito conquistado após muitas mortes e violências.
O único nome que deve importar para uma pessoa é o nome que ela se sente confortável em ser chamada. O único gênero que uma pessoa deve ser tratada é o gênero que essa pessoa se identifica.
Ter o campo “sexo”, que sabemos que, na real, nada mais é do que a genitália que uma pessoa possui, é extremamente violento e absurdo. O direito ao nome ao gênero é o básico que uma sociedade que se diz democrática deve oferecer para sua população.
Durante anos e anos, vivemos às margens da sociedade. Violentados, excluídos. Homens trans e pessoas transmasculinas eram ainda mais invisíveis. Mulheres trans e travestis eram compulsoriamente jogadas às realidades das ruas e da prostituição.
A extrema-direita usa de desinformação e mentiras para conseguir desumanizar corpos trans. Não caiam nesse discurso. Não permitam que o nosso sangue também esteja em suas mãos. Pensem, por um minuto, e se fossem seus filhos? Implorando pelo direito de ter seu nome respeitado. De ser quem se é.
A nossa existência não é para atacar pessoas cisgêneras. Muito pelo contrário. Nós, pessoas trans, ainda lutamos pelo direito de ser, existir e viver. Lutamos para deixar de ser o país que mais mata pessoas trans em todo mundo, lutamos para mudar a triste realidade do alto índice de suicídios entre pessoas trans.
Só queremos respeito, nada mais do que isso. E a única forma de combater esse ódio, que está em todas as esferas, é se informando, acompanhando o trabalho de pessoas trans e tendo empatia acima de tudo.
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