Há algumas semanas, Fabricio Bloisi, CEO da empresa do IFood – que entrega refeições por meio da internet, disse que daqui a 10 anos, ninguém mais vai precisar cozinhar. Ou seja, todos passaremos a depender exclusivamente dos estabelecimentos que fornecem comida (fast-food) e também das entregas por aplicativo.
O presidente do Ifood foi infeliz e equivocado em sua colocação sobre o futuro da nossa relação com a comida. Mas não podemos dizer que ele foi ingênuo.
A fala do CEO surge em um momento em que todos clamam por comidas rápidas (instantâneas), preparos embalados e comidas que cheguem o mais rápido possível por meio de trabalhadores precarizados e explorados (motoboys).
Essa lógica da rapidez, da comida preparada por terceiros, contempla plenamente uma engrenagem econômica que se norteia pela acumulação de capital, que tem como base o consumo desenfreado e sem limite.
A economia capitalista é a principal responsável por toda alteração em nosso modo de vida. Assim, entender por que a maioria das pessoas deseja ter uma vida “simplificada” por meio dessas ‘facilidades’ advindas de técnicas modernas não é uma tarefa difícil.
Entretanto, afirmar que o problema é sistêmico não significa que a luta será apenas nesse âmbito. O trabalho de base, a comunicação popular, a valorização do ato de cozinhar na medida do possível são ferramentas importantes.
Para facilitar a compreensão de como esse sistema interfere em nossa relação social, é só notar como a dinâmica de nosso cotidiano é completamente impactada dentro dessa sociedade moderna. Nosso modo de vida se resume a dedicar-se ao emprego e gastar o mínimo de energia em funções que não sejam trabalhar para sobreviver.
Pedir comida tem se tornado cada vez mais popular no Brasil e no mundo. Em meio à expansão das cidades e aos empregos exaustivos, o tempo parece cada vez mais curto, e cozinhar se torna uma tarefa indesejada.
Com base nesse contexto, as pessoas tendem a cozinhar menos e pedir mais comida. O presidente do iFood, com essa afirmação, apenas “joga para a torcida”.
Para Bloisi, cozinhar em casa é mal visto para seus negócios, as pessoas precisam ser cada vez mais dependentes de comida pronta e rápida, para que o hábito de pedir comida se torne uma norma.
A ideia de que as pessoas não vão precisar mais cozinhar e vão depender das entregas por aplicativo é benéfica apenas para as empresas, pois essas corporações controlam a publicidade, induzem o desejo e direcionam o consumo. Basta pensar quantas vezes por dia você se depara com uma propaganda do iFood, ou de similares.
Por outro lado, a ideia de que ninguém mais vai cozinhar levanta a questão de se a comida será produzida por máquinas ou se pessoas precarizadas seguirão cozinhando em troca de baixos salários. E sabemos que a segunda opção é a mais provável.
Enquanto as pessoas se alimentam de preparos rápidos, que em sua maioria são hipercalóricos e não contemplam a necessidade diária de nutrientes, as grandes empresas de aplicativo de comida superfaturam.
Embora cozinhar seja uma necessidade humana, o ato em si não é apenas por sobrevivência para as populações. Ir para a cozinha preparar os alimentos, fazer compras de legumes, vegetais, desenvolver esse contato direto com o que comemos, é um diferencial para uma boa relação com uma alimentação saudável e nutritiva.
Não acreditamos que daqui a 10 anos ninguém mais irá cozinhar. No entanto, se continuarmos nessa lógica do atual sistema econômico, nossa relação com a comida será completamente alterada.
Diante desse cenário, cabe a nós lutarmos pela cozinha e reivindicar esse espaço tão importante e polêmico ao mesmo tempo. Cozinhar é um ato revolucionário, pois somos estimulados diariamente a seguir tendências, como consumir fast-food, comer fora e pedir comida por aplicativo. O resultado é que, em busca de liberdade, estamos nos amarrando cada vez mais.
Um ponto importante é que a colocação do presidente do iFood tem um caráter ideológico de evolução, progresso e avanço. E isso não poderia estar mais equivocado. Cozinhar nos torna protagonistas de nossa saúde e não coadjuvantes, que consomem o que está em uma lista restrita de um cardápio online.
O fast-food atrelado às entregas por aplicativo estimula um consumo de produtos prontos, ultraprocessados, carregados de açúcar, sal, gordura e químicos, como corantes e conservantes, que consumidos em excesso são nocivos à saúde humana. E, em circunstância alguma, deixar de cozinhar e viver apenas comprando comida pronta pode ser visto como um progresso.
Cozinhar é necessário, prazeroso e gratificante. Além do mais, nos permite saber a quantidade e a qualidade de cada ingrediente que vamos ingerir, quanto de sal, açúcar, alimentos refinados e gordura vão ser utilizados nos preparos, por exemplo. Preparar a própria comida nos permite conhecer os alimentos que estamos utilizando, nos dá autonomia.
Quando temos que fazer nossa comida, vamos até a feira ou até o mercado e nos relacionamos com os grãos, cereais, frutas, legumes e vegetais de forma direta, isso faz parte de centenas de culturas pelo mundo e não pode ser tratado como um atraso, em hipótese alguma.
Ao deixarmos de cozinhar, nos tornamos reféns do fast-food e dependentes de comidas das quais desconhecemos a origem e a qualidade, e entregamos de bandeja para terceiros decidirem o que vamos comer e como vamos comer.
Temos que nos organizar enquanto sociedade, lutar por comida de verdade, por autonomia alimentar, enfrentando as empresas que tentam condicionar nossos gostos e consumo. Dito isso, o ato de cozinhar não é o melhor caminho, é o único possível.
Fabrício Bloisi se mostra elitista e ignorante perante a realidade brasileira ao dizer que “daqui a 10 anos ninguém mais vai cozinhar”. Essa é uma afronta que ignora completamente a importância nutricional, social e emocional de cozinhar a própria comida, principalmente nas periferias e favelas brasileiras.
*Eduardo e Leonardo dos Santos, nascidos e criados na região do Campo Grande em Campinas, São Paulo, estão por trás da página Vegano Periférico. São midiativistas, escritores, comunicadores e atuam pelos direitos sociais e animais através das plataformas digitais, e hoje contam com mais de 300 mil seguidores em suas redes sociais.
***Este conteúdo é uma coluna de opinião que representa as ideias de quem escreve, não do veículo.
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