“A impunidade da ditadura trouxe consequências nocivas para a população negra no Brasil”, diz Gabrielle Oliveira de Abreu, historiadora e coordenadora institucional do Movimento Mulheres Negras Decidem. Gabrielle é mestra em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e escreveu sua dissertação sobre as experiências de negras e negros durante o regime autoritário que predominou no Brasil de 1964 e 1985.
O texto da historiadora conclui, por exemplo, que o apagão de informações sobre o cotidiano de pessoas negras no período ditatorial não reflete a concreta e brutal violação dos direitos humanos sofrida por essa população — um grupo ignorado até mesmo no censo populacional de 1970, quando a composição racial brasileira sequer foi pautada.
Gabrielle diz que, embora não tenha inventado o racismo, o que se seguiu ao golpe militar deixou de herança novas formas de repressão contra pessoas negras e que a demora na instalação da Comissão Nacional da Verdade (CNV) no Brasil prejudicou essa reflexão — o trabalho só teria início três décadas depois do fim da ditadura militar no País.
A CNV foi um colegiado instituído pelo governo federal em 2012 para investigar as graves violações de direitos humanos no Brasil desde o ano de 1946 até 1988. A comissão analisou o período, identificou culpados e vítimas e elaborou uma série de recomendações para o Estado, mas não foi, em si, um instrumento de punição.
Outras nações da América Latina passaram por períodos e modelos de ditadura muito parecidos com os dos Brasil, a exemplo de Uruguai, Argentina e Paraguai. No entanto, eles instauraram suas comissões da verdade quase que imediatamente ao fim do regime. “No Brasil, nesses quase 30 anos, muito se perdeu. Ainda tinham documentações e testemunhas, mas tivemos de forma escassa experiências de punição. Isso culminou na continuidade nociva entre as violências praticadas no passado e as que são praticadas no presente”, afirma a especialista.
A polícia mata mais os negros A continuidade nociva de violências se expressa, entre outros pontos, no retrato da violência policial no Brasil. De acordo com dados do Anuário de Segurança Pública de 2020, quem mais morre nas intervenções policiais no País são homens jovens e negros, com maior prevalência dos que têm de 18 a 24 anos. O estudo mostra que pretos e pardos são 78,9% das vítimas das 6.416 mortes causadas pela polícia em 2020. Desde 2013, quando o levantamento começou a ser feito, esse tipo de crime cresceu 190%. “Existe reconhecimento formal dos direitos civis, políticos e sociais desses grupos na letra da lei, mas o abismo entre a formalidade legal expressa no papel e a efetivação real de tais direitos permanece imenso”, diz um trecho do relatório sobre a vulnerabilidade de negros à violência policial.
Movimento negro no Brasil — O golpe militar em 1964 dificultou muito a atuação política em meio a repressões e censuras. Todos os movimentos sociais de oposição foram, é claro, duramente atingidos. Mas na década de 1970 o movimento negro se fortaleceu com a criação do Movimento Negro Unificado (MNU), depois de um caso de violência policial contra um jovem e outro de racismo sofrido por atletas num clube.
“Foi uma experiência unificada que nós não tínhamos desde a década de 1930, na Frente Negra Brasileira”, afirma Gabrielle. A historiadora ressalta as críticas contundentes do MNU à ditadura, dos pontos de vista político, social e econômico: “O movimento esteve muito próximo desse período de redemocratização, que em tese a gente vive hoje. Eles fizeram parte dos comitês brasileiros que cobraram o fim da ditadura e a anistia de presos políticos, levando as pautas raciais para grupos que, apesar de progressistas, não tinham essa dimensão racial”.
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Hoje o negro ainda sofre e vota em maioria branca de políticos. Parabéns à historiadora, pois seu trabalho dá uma visão para que a sociedade perceba que a luta contra o preconceito não acabou.