Entre os anos de 2019 e 2022, durante o governo de Jair Bolsonaro, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) registrou 795 assassinatos de pessoas indígenas. Menos de um ano depois do lançamento do relatório “Violência contra os povos indígenas no Brasil”, elaborado anualmente, com sua última edição lançada em junho de 2023, iniciamos 2024 e o segundo ano de governo Lula com assassinatos brutais de lideranças do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe. Esse é mais um caso que entrará para estatística da barbárie no campo e contra os povos originários, mas também para a lista de inobservância do Estado em promover ações efetivas de reforma agrária.
No dia 21 de Janeiro, um grupo de indígenas do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe, do Território Caramuru, em Potiguará (BA), sofreu um ataque de cerca de 200 ruralistas, que se organizaram através de um aplicativo de mensagens, segundo nota do Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Estes fazendeiros e comerciantes se articularam para recuperar, sem decisão judicial, a posse da Fazenda Inhuma, retomada por indígenas no dia anterior.
A ação foi feita por grupos fortemente armados, que cercaram a área e dispararam tiros que resultaram na morte de Maria de Fátima Muniz de Andrade, conhecida como Nega Pataxó, majé (feminino de pajé) da comunidade. Seu irmão, o cacique Nailton Muniz Pataxó, também foi atingido, mas foi socorrido com vida. Uma mulher indígena teve o braço quebrado e outras pessoas foram hospitalizadas. O conflito também resultou na prisão em flagrante de dois fazendeiros, por homicídio e tentativa de homicídio. De acordo com a Secretaria da Segurança Pública da Bahia, o conflito ocorreu durante a ação de um grupo denominado Movimento Invasão Zero.
QUEM SÃO OS VERDADEIROS INVASORES? – Segundo o Mapa de Conflitos da FioCruz, a reserva indígena Caramuru Paraguassu é uma das mais antigas do Estado da Bahia. Foi criada, pelo Serviço de Proteção ao Índio, em 1926, “em terras devolutas do Estado da Bahia, para “gozo dos índios Pataxós e Tupinambás” (Lei Estadual nº 1916…)” de 11/08/1926. Entre 1936 e 1937, o território foi demarcado. Até os anos 1970, fazendeiros de cacau e gado promoveram invasões da reserva, ocasionando a expulsão de pelo menos 95% da população original dos Pataxó Hã-hã-hãe do local. Entre 1976 e 1982, o governo do Estado da Bahia extinguiu a reserva e iniciou a emissão de títulos em favor dos invasores.
Os Pataxó Hã-hã-hãe, da Terra Indígena Caramuru Paraguassu, localizada nos municípios de Pau Brasil, Camacã e Itaju do Colonia, de acordo com a FioCruz, estão há 26 anos tentando reaver suas terras tradicionais através de uma ação de nulidade de títulos impetrada junto à justiça federal. Durante esse tempo os indígenas Pataxó têm enfrentado a oposição de diversos fazendeiros da região, contrários à retomada das terras pelos povos tradicionais. O Mapa de Conflitos ainda aborda que a Fundação Nacional do Índio (Funai) já indenizou cerca de um terço dos fazendeiros pelas benfeitorias de boa fé encontradas dentro dos 54.100 hectares da terra indígena Pataxó. Contudo, uma parcela dos cerca de 60 grandes fazendeiros que possuem terras na área demarcada, se recusa a sair delas ou a negociar qualquer indenização. Organizados em torno do Sindicato Rural de Pau Brasil, eles são acusados de promoverem atentados, ameaças a militantes e vários assassinatos de lideranças indígenas.
É nesse contexto que o grupo ruralista “Invasão Zero” foi fundado no Sul da Bahia por ricos e influentes donos de terras, ganhando notoriedade pelas investigações de envolvimento nos conflitos para desfazer ocupações de terras sem respaldo em decisões judiciais, apoiados por associações empresariais, do agronegócio e políticos. O grupo está sendo investigado pela Polícia Civil por suspeita de atuar como uma milícia rural e pelo envolvimento na morte de Nega Pataxó.
Em nota, representando os produtores, a Federação da Agricultura e Pecuária do Estado da Bahia (Faeb), lamentou o ocorrido. “Representando os produtores rurais e sindicatos rurais da Bahia, a Faeb, como vem fazendo ao longo dos últimos anos, mais uma vez convoca o poder público para garantir o que está previsto na Constituição. Combater invasões de terra vai além de defender a propriedade privada e a segurança no campo, é a defesa sobretudo do Estado de Direito”, disse.
Em 14 de dezembro de 2023, o Congresso Nacional derrubou, em sessão conjunta, a maior parte dos vetos de Lula ao Projeto de Lei 2903/2023, dentre eles o trecho relacionado à tese do marco temporal. A proposta, que agora vigora como Lei 14.701/2023, impulsionou ainda mais fazendeiros, empresários e políticos contrários à causa indígena a investirem contra as comunidades, na tentativa de expulsar as famílias da posse de suas terras tradicionais.
Em pouco mais de 30 dias (14 de dezembro 2023 a 21 de janeiro 2024), segundo o Cimi, foram registradas pelo menos oito investidas contra os povos indígenas no Sul e Extremo Sul da Bahia, quatro delas apenas nos primeiros 21 dias de janeiro. A situação demonstra a necessidade de que os direitos territoriais reivindicados pelos povos originários sejam garantidos de forma rápida e efetiva.
A tragédia em curso na Terra Indígena Caramuru-Paraguassu urge uma intervenção firme, que vá contra a impunidade dos vários assassinatos e do círculo vicioso e crescente de violência. Cabe ao Estado garantir a integridade física do povo Pataxó Hãhãhãe e de investigar, e punir, os responsáveis pela formação e ação de milícias na cidade, mas também no campo.
A perda de lideranças, como Nega, Cacique Lucas e tantos outros defensores da terra, do território e do bem-viver, escancara a importância da implementação de políticas públicas dedicadas à defesa da vida dos povos e comunidades tradicionais, que como consta na Constituição Federal, é dever da União demarcar territórios indígenas. A falta de demarcação gera cenários de insegurança jurídica aos indígenas locais e abre espaço para os conflitos com os fazendeiros.
É necessário que o Estado, historicamente omisso no que diz respeito à políticas de reforma agrária, esteja comprometido com o combate a violência no campo, que busquem não apenas corrigir desigualdades históricas na distribuição de terras, mas também contribua para a construção de uma sociedade mais justa, que respeite os direitos humanos e que preserve as contribuições culturais e sociais promovidas por comunidades tradicionais e do campo e viabilize o acesso à terra, ao bem-viver e à re(existência) dos povos.
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