A cidade de São Paulo cogita a implantação da tarifa zero no transporte coletivo. Um estudo sobre a viabilidade jurídica, financeira e econômica foi solicitado pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB), que trata uma eventual mudança também como uma forma de desestímulo ao uso do automóvel em meio ao avanço das mudanças climáticas.
O passe livre municipal tem crescido nos últimos anos no País e no exterior, chegando ao interior e à Grande São Paulo e até a cidades de médio porte em outros Estados, como Caucaia, a segunda mais populosa do Ceará, mas enfrenta desafios.
“A gente tem visto essa questão da importância de fazer com que o transporte coletivo seja mais utilizado, de utilizar menos o transporte individual. Vejo como de grande importância a cidade de São Paulo ficar entre as grandes cidades do mundo nas ações climáticas”, declarou Nunes à imprensa, após uma agenda pública na última semana.
“Se houver a viabilidade do ponto de vista financeiro, econômico e legal, é possível que isso caminhe”, completou. Provável candidato à reeleição em 2024, Nunes também chegou a encabeçar reuniões em Brasília por recursos federais para o transporte coletivo no ano passado e tem evitado falar em aumentos na tarifa.
Sem citar exemplos, ele comentou sobre discutir, entre outros pontos, os repasses hoje feitos pelas empresas para o vale-transporte. Em municípios, como Paranaguá, no Paraná, e Porto Alegre, discutiu-se a possibilidade de remodelar esse recurso e utilizá-lo como uma das fontes de financiamento da tarifa zero, porém as propostas enfrentaram resistência.
O estudo de viabilidade será feito pela SPTrans, vinculada ao Município e gestora do transporte por ônibus. Segundo o prefeito a "grande questão" será o custeio, pois a Prefeitura tem valor alto em caixa — R$ 32 bilhões —, mas empenhado ou vinculado a fundos específicos. Além disso, como está em discussão inicial, não entrará no orçamento do ano que vem, atualmente em fase de discussão na Câmara Municipal. Para 2023, a SPTrans prevê que a maior parte do custo do transporte coletivo municipal seja bancado pela Prefeitura. A estimativa é que o valor arrecadado na tarifa se mantenha em cerca de R$ 5 bilhões, enquanto R$ 7,4 bilhões precisem ser subsidiados pelo Município, embora o valor proposto no orçamento seja metade.
“Haverá necessidade de fazermos as articulações necessárias, no momento oportuno, para suplementar R$ 3,7 bilhões?, afirmou o diretor de Administração de Infraestrutura da SPTrans, Anderson Clayton Maia, durante audiência pública na Comissão de Finanças e Orçamento da Câmara na quarta-feira, 16. A estimativa ainda não inclui a possibilidade de implantação da tarifa zero. Se a proposta for adotada pela Prefeitura futuramente, deverá ser apresentada no legislativo municipal.
A discussão sobre a implementação da tarifa zero começou em São Paulo há mais de 30 anos, na gestão Luiza Erundina (então no PT) em 1989. À época, a Prefeitura propôs que o subsídio fosse proveniente de diferentes níveis de alíquota do IPTU, porém não obteve apoio legislativo. Um plebiscito para a população discorrer sobre o tema também foi proposto na Câmara, em 1991, pelo vereador Eduardo Suplicy (PT), mas obteve parecer desfavorável na Comissão de Constituição e Justiça, que apontou “ilegalidade”.
O passe livre voltou a ser discutido no Município após as manifestações contra o aumento da tarifa em 2013, o que culminou na criação da gratuidade para estudantes de baixa renda na gestão Fernando Haddad (PT). A medida foi modificada três anos depois, com restrições no número de viagens, pela gestão João Doria (então no PSDB), assim como a de Bruno Covas (PSDB) extinguiu a gratuidade de idosos de 60 a 64 anos, retomada neste ano por Nunes, mas exclusivamente para os de baixa renda.
Experiências internacionais — Hoje, não há uma metrópole ocidental de porte próximo ao paulistano que adote a medida, embora algumas estudem o tema. A prefeita de Paris, Anne Hidalgo, chegou a defender a adoção na capital francesa.
Entre as maiores cidades com a tarifa zero, estão a capital da Estônia, Tallinn, com 426 mil habitantes, que implantou o passe livre há quase uma década, e Kansas City (EUA), com 508 mil pessoas. No Brasil, as principais referências são Caucaia, a segunda cidade mais populosa do Ceará, com população de cerca de 369 mil pessoas, e Maricá, na região metropolitana do Rio, com 168 mil habitantes.
Levantamento da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) identificou ao menos 44 prefeituras que oferecem transporte coletivo com tarifa zero. Segundo o Anuário 2021-2022 da entidade, a maioria é formada por municípios com menos de 100 mil habitantes. Com novas adesões neste ano, pesquisadores do tema estimam que o número tenha passado de 50, porém os dados não incluem as cidades que aderiram à ideia para um dia da semana específicos, geralmente nos sábados ou domingos.
Ao Estadão, a prefeitura de Caucaia destacou que a demanda de passageiros aumentou de 500 mil para mais de 2 milhões mensalmente após a criação do “Bora de Graça”. No modelo adotado pela gestão do Vitor Valim (Pros), a operadora dos ônibus é remunerada pelo quilômetro rodado, não pelo número de passageiros, com monitoramento dos percursos pelo Município por meio de um sistema. O programa custa cerca de R$ 2,5 milhões mensais.
Especialistas ouvidos pelo Estadão avaliam que a crise do setor de transportes na pandemia foi um dos fatores que alavancou a adesão a esse modelo, pois o retorno financeiro das empresas estava atrelado ao número de passageiros, que teve queda no período de maior distanciamento social. Outro ponto é o aumento da discussão sobre o tema após prefeituras aderirem à tarifa zero nas datas do 1º e 2º turno da eleição em movimento gerado por mudanças na política aplicada em Porto Alegre.
Avaliação de especialistas — Entre as principais consequências da tarifa zero, está o aumento do número de usuários, com municípios brasileiros que apontam que triplicaram ou até quadruplicaram a demanda com a medida, geralmente associando à maior adesão da população de baixa renda e não a uma migração dos usuários que priorizam o transporte individual. Por isso, uma eventual implementação não poderia considerar o custo atual de operação, porque a frota e o serviço precisariam ser adaptados à um número crescente de passageiros.
Especialistas ouvidos pelo Estadão, falaram que o financiamento poderia vir de fontes diversas, como a propaganda e a criação de novos impostos sobre a circulação de carros e o funcionamento de aplicativos de transporte, dentre outros. A criação de um Sistema Único de Transporte, inspirado no Sistema Único de Saúde (SUS), com recursos estaduais e federais, também é uma alternativa apontada. Na prática, algumas dessas medidas tendem a enfrentar resistência de parte da população, tanto por envolverem restrições ao automóvel quanto pela criação de novos tributos.
Para o economista e secretário executivo do Instituto MDT (Movimento pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade), Wesley Ferro Nogueira, uma eventual adesão à tarifa zero precisa primeiramente de investimento amplo em infraestrutura. Não apenas com o aumento de frota, mas de corredores de ônibus e outras medidas que tornem a mobilidade por esse meio adequada à demanda e mais atrativa para o usuário que hoje utiliza o carro.
Na avaliação do economista, o abandono do automóvel de fato dependeria também de medidas de restrição, como ocorre em cidades europeias, com pedágio urbano, por exemplo. Além disso, seria necessário um amplo diálogo com todos os poderes e a sociedade civil, por ser política pública nova e para garantir que não seja revogada em uma eventual mudança de gestão ou afim.
Outro ponto que destaca é o dos possíveis custos que podem surgir após a implantação, como no caso de cidades americanas que tiveram que investir em segurança após a adesão, com a instalação de câmeras e outras medidas. Em Paulínia (SP), por exemplo, após oito anos, o passe livre aos domingos e feriados foi extinto em 2018, com a justificativa oficial de que ampliava casos de vandalismo e violência nos ônibus. “A conta não é simples, com custo muito maior que o atual”, destaca Nogueira.
DEBATE: EXCLUSÃO SOCIAL, CUSTO, BENEFÍCIO AMBIENTAL
Coordenador do programa de Mobilidade Urbana do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), Rafael Calabria avalia que uma eventual adesão de São Paulo deveria necessariamente envolver o Metrô e a CPTM, como ocorre na unificação do valor da tarifa. "Se não, o metrô perderia passageiro, sub utilizaria um sistema de alta capacidade."
Calabria comenta que exemplos nacionais de aumento de passageiros mostram que a cobrança de tarifa é uma forma de exclusão social da população de mais baixa renda e que o atual modelo está em crise, principalmente após a pandemia. "O atual modelo precisa ser revisto."
Luiz Roberto Cunha, professor do Departamento de Economia da PUC-RJ, vê a ideia com desconfiança. "É muito difícil um projeto assim. No mundo, essas experiências foram em cidades pequenas, mas em nenhuma do tamanho de São Paulo", aponta . "O custo e volume de recursos para isso funcionar requer um valor muito alto e não faz muito sentido."
E o pretendido benefício ambiental, também de acordo com economista, não funcionaria. "A ideia de fazer isso (passagem gratuita) para tirar carro da rua também é um pouco ingênua. São Paulo já tem, por exemplo, um serviço de metrô excelente. As pessoas usam carro pelo conforto e agilidade de chegar nos lugares."
Proponente da tarifa zero na gestão Luiz Erundina (então no PT), na qual foi secretário de Transportes, o engenheiro civil Lucio Gregori avalia que a medida depende de uma reforma tributária. "Tem de ter dinheiro novo, que vem de impostos ou taxas, que incidem sobre pessoas com mais recursos, e essas resistem muito à (uma nova) contribuição", diz. Como exemplo de novos impostos ou taxas, fala em mudanças como criar uma cobrança sobre os automóveis, seja pelo uso das vias municipais, seja pela operação de aplicativos de transporte.
Críticos da concessão de crescentes subsídios ao setor veem risco de "injustiça fiscal". Isso porque o passe livre beneficiaria pobres, mas também parte da classe média que usa o transporte público. E, assim, a aplicação deste montante alto não estaria focada somente na população mais necessitada.
Medida ganha espaço no interior de São Paulo — Coordenador do Observatório da Mobilidade de Salvador e pesquisador do tema no doutorado em Arquitetura e Urbanismo na UFBA, Daniel Caribé diz que a tarifa zero é adotada por prefeitos de diferentes orientações ideológicas no Brasil e no exterior. Para ele, o desemprego e a inflação tiraram parte da população de menor renda dos ônibus, dificultando o acesso a emprego, comércio e serviços, o que fortalece o debate. “As pessoas ficam restritas àquilo que está no raio que pode atingir pela mobilidade ativa, a pé e de bicicleta.”
A medida também tem ganhado espaço em municípios paulistas, tanto do interior quanto de regiões metropolitanas. Entre os que aderiram, em janeiro de 2021, está Artur Nogueira, na região metropolitana de Campinas com uma população estimada de 56,2 mil pessoas. Uma das motivações foi atender à população mais empobrecida, que tinha a então tarifa de R$ 2 como uma dificuldade para ter acesso a outras partes da cidade, segundo o prefeito, Lucas Sia (PSD).
Ele explica que parte da passagem já era subsidiada, então o impacto financeiro aumentou em cerca de R$ 110 mil ao ano, além das despesas com a oferta do transporte já existentes. “O valor arrecadado não resolvia muita coisa, e agora fica mais fácil para a população conseguir (acessar) o que mais precisa”, diz. Por outro lado, a demanda de usuário praticamente quadruplicou, de cerca de 150 para até 600 por dia, tanto que se estuda um aumento na frota, hoje de um veículo.
Aumento semelhante foi identificada em Itapeva, município a cerca de 60 quilômetros da divisa com o Paraná e com população estimada de 95,2 mil habitantes. Segundo a gestão do prefeito Mario Tissinari (União Brasil), a demanda triplicou desde a adesão, em agosto de 2021, chegando a quase 10 mil usuários por dia.
Outros municípios também recentemente encomendaram estudos sobre a viabilidade da adesão, como Capão Bonito, e publicaram editais para a contratação da empresa que prestará o serviço, como Tietê. Na vizinha Cerquilho, de 50,6 mil habitantes, a tarifa zero funciona desde outubro.
Já em Vargem Grande Paulista, na Grande São Paulo, a iniciativa foi implantada ainda no fim de 2019, contemplando seis diferentes linhas. Um comparativo feito no fim do ano passado apontava que o número de passageiros passou de cerca de 36 mil por mês para mais de 100 mil. Segundo a prefeitura, a medida estimulou o comércio local, reduziu os deslocamento dos moradores para cidades vizinhas e incentivou a contratação de mão de obra local.
Já a lista de cidades que implantaram a tarifa zero em um dia da semana inclui outros municípios da região metropolitana da capital paulista. Há um ano, por exemplo, Ribeirão Pires, com 125,2 mil habitantes, tem passe livre aos domingos.