Há alguns meses, fui convidada para falar sobre pessoas trans e como os terreiros podem acolher as demandas e questões desses corpos. Esse encontro ocorreu em uma biblioteca pública na Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo. Foi um sarau que mesclava “palestras” e intervenções poéticas, musicais e de dança. Os participantes eram de terreiros das periferias de São Paulo. O evento foi organizado pelo Coletivo Òmindelè, que nasceu dentro de um terreiro da Vila Holanda, fundo da Cidade Tiradentes.
Foi uma daquelas experiências que chamamos de únicas, pais e mães de santo, jovens e velhos juntos ouvindo ou se apresentando, dispostos a usar aquele espaço como uma ferramenta de manifestação de cultura e elaboração de conhecimentos. Algumas pessoas estavam vestidas com as roupas da religião: batas, saias, turbantes, panos coloridos; outras estavam vestidas com roupas casuais. Esse é um dos diversos terreiros que têm desempenhado um papel fundamental na promoção da cultura e na aproximação das comunidades das periferias.
O Ilê Ègbè Òsun Òmindelè existe há mais de 20 anos e é cuidado pelo babalorixá Alcides de Òsun, pai de santo e liderança local antiga, que sempre atuou no bairro e tem o sonho de fazer do Axé, nome dado ao terreiro, um espaço que, para além de acolher, também dialoga diretamente com a comunidade através da cultura. Nas palavras dele: “é preciso transcender a religião, é claro que a religião é importante, mas foi uma estratégia encontrada para que o terreiro conquistasse respeito na comunidade”.
Na semana passada, os terreiros e religiões de matrizes africanas ficaram em evidência nas mídias. Uma conversa vazada no caso da atriz Larissa Manoela, onde sua mãe Silvana Taques, que está sendo investigada por intolerância religiosa, zomba da religião da família do companheiro da filha, e também o assassinato da Mãe Bernadete, líder quilombola e mãe de santos, que foi encontrada morta dentro de seu quilombo em Salvador.
Esses casos refletem o aumento considerável de ataques às religiões de matrizes africanas que vêm acontecendo nos últimos dois anos. É importante destacar que os ataques têm como pano de fundo o racismo, pois as agressões às religiões vêm do período escravagista como uma forma de apagar a identidade desse povo.
Cultura para não demonizar
A cultura é uma poderosa ferramenta de transformação social, e o terreiro do Babalorixá Alcides tem compreendido isso de forma brilhante. Esses locais sagrados, onde são realizados rituais religiosos e cultos, têm aberto suas portas para a comunidade, oferecendo uma série de atividades que vão além da religião. Com o documentário “Um dia no Ilê”, que mostra um dia de festa de Erê no terreiro. Os erês são entidades representadas por crianças que fazem a intermediação entre os orixás e os seres humanos.
Nas religiões de matriz africana, o diabo não existe, logo não é uma festa que o cultua, mas celebra a existência de seres iluminados.
A DJ Bia Sankofa começou a participar do terreiro e observou a vontade do espaço de se aproximar da comunidade. Com sua experiência na área da cultura, ajudou a colocar algumas atividades em prática. Foi através de samba de terreiro, intervenções artísticas e saraus, que sempre buscam homenagear uma pessoa importante para os terreiros ou as entidades.
Por exemplo, a batalha de rap “No flow de Ogum”. Batalhas de rap são encontros onde rappers competem para ver quem é melhor em rimar. Já Ogum é o Orixá da batalha. Entenderam o tema?
Além disso, o terreiro tem oferecido cursos e oficinas gratuitas para a comunidade. Através dessas iniciativas, é possível aprender sobre diferentes aspectos da cultura afro-brasileira, oficinas de DJs, audiovisual e as formações culturais que buscam fundar o primeiro grupo de afoxé, uma manifestação popular de origem africana, na Cidade Tiradentes. Este último projeto é viabilizado pelo fomento à cultura nas periferias, mas o restante das atividades é feito com “raça e coragem”, como diz Bia.
Ao abrir suas portas para a comunidade, os terreiros estão proporcionando um ambiente seguro e acolhedor para que as pessoas possam se sentir pertencentes e respeitadas. É através da arte que se cura e reaviva o amor da periferia por sua história de resistência.
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