Estadão mostra como dois amigos mapearam 800 cursos d’água sob o concreto da capital paulista. A reportagem é de João Prata
O urbanista José Bueno e o geógrafo Luiz de Campos criaram em São Paulo, há dez anos, o projeto Rios e Ruas. O objetivo é sensibilizar a sociedade sobre a realidade dos rios esquecidos.
Com reportagem de João Prata (texto) e Tiago Queiroz (fotos), O Estado de S. Paulo
Os especialistas contam que o código do Sapateiro e boa parte dos 800 rios que estão escondidos embaixo do concreto da capital paulista nascem próximos à estação Ana Rosa do metrô. A região alta da cidade é denominada Espigão de São Paulo, uma crista que separa as duas grandes bacias do município: de um lado, córregos e riachos descem em direção ao Tietê. Do outro, desembocam no Rio Pinheiros.
A missão de Bueno e Campos é encontrar e revelar o trajeto dos rios. Depois, realizar expedições para contar a história dos cursos d’água, sua relação com a cidade e tentar de alguma maneira mudar a mentalidade da população.
“Vivemos em uma cidade biofóbica. Acham que a raiz da árvore estraga a calçada, que a folha entope a calha, que o rio inunda e traz mau cheiro. A gente vai se afastando do que é natural. Nosso processo é repensar nossa relação com o que é vivo. O cuidado com os rios não é uma poesia. É proteger o que é vivo. É um trabalho de transformação do nosso olhar”
José Bueno, urbanista
Campos acrescenta que independentemente da ação do homem ou das ideias para colocar ainda mais concreto na cidade, os rios continuarão existindo.
“É praticamente impossível matar um rio. Por mais metrôs, ruas e prédios com garagens sejam construídos, o rio não morre. Ele pode no máximo mudar seu curso, mas continuará existindo”
Luiz de Campos, geógrafo
Bueno e Campos começaram as descobertas em 2010, depois que um amigo em comum colocou os dois para tomar café. Eles tinham em comum essa inquietação e, indignação, sobre a força da grana que ergue e destrói coisas belas na cidade. Campos contou sobre o trabalho que fazia desde 1995 com a temática “rios invisíveis” e Bueno adorou, lembrou de suas origens na FAU como estudante de arquitetura e urbanismo. Uns dias depois pegaram a bicicleta, o mapa hidrográfico da cidade e saíram por aí. Encontraram um riacho em um terreno baldio, que passava sob uma delegacia. Bueno entrou, falou com o delegado, que adorou a iniciativa e ajudou a dupla a pular um muro e seguir o rio até o final.
Neste 2021, a reportagem seguiu com Bueno e Campos o trajeto do Sapateiro, que está sob o concreto. Na Rua Maestro Callia, ainda na Vila Mariana, uma ladeira esburacada, com muros altos dos dois lados e com pouco movimento, um gradil no asfalto permite ver a continuação do riacho, uns três metros para baixo. A água está ainda mais forte e com cheiro de esgoto. “Aqui é um exemplo de rua que não precisa existir. Imagina um pequeno deck de madeira e as pessoas podendo acessar o rio? Era assim até o final dos anos 50 mais ou menos”, conta Bueno.
O Sapateiro some novamente uns metros adiante e vai aparecer somente no Parque do Ibirapuera. Lá passa por uma estação de tratamento chamada de flotação. A água passa por um processo de limpeza com oxigênio e produtos químicos, que fazem os poluentes emergirem como espuma. Grades também contém objetos que foram jogados no rio. Uns metros depois disso já é possível ver peixes e aves no córrego, que segue e vai desaguar no grande lago do parque.
O trajeto ainda não terminou. Ele segue sob a Juscelino Kubitschek, passa à margem do Parque do Povo e deságua no Rio Pinheiros. Entre plásticos, pneus e uma poluição que as águas arrastam, o projeto de despoluição do Sapateiro tem permitido que garças se posicionem na foz do rio para pescar peixes que chegam vivos até ali. Campos alerta que não há milagre, por enquanto, que o peixe que cai ali morrerá logo por falta de oxigênio. As águas do Sapateiro seguem pelo rio Pinheiros, descem pelos Estados ao Sul do Brasil, continuam pela fronteira entre Uruguai e Argentina até desaguar no Oceano Atlântico.