Neste dia 25 de janeiro a cidade de São Paulo celebra 468 anos. O Expresso na Perifa, em parceria com o coletivo Nós, Mulheres da Periferia, publica esta entrevista exclusiva com a cantora Anelis Assumpção. A artista conta de sua relação com a capital paulista, fala de seu trabalho e da preservação do legado de seu pai. Nascido em Tietê e morador do bairro da Penha por trinta anos, o músico Itamar Assumpção (1949-2003) sempre demonstrou afeto pela cidade. Na canção Persigo São Paulo, ele diz:
E não, não
São Paulo é outra coisa
Não é exatamente amor
É identificação absoluta
Sou eu
ITAMAR, AS ORQUÍDEAS E ESTA REPÓRTER Quando visitei a exposição Afro Brasileiro Puro no Centro Cultural da Penha, zona leste de São Paulo, descobri que o músico Itamar Assumpção (1949-2003) cuidava de orquídeas, assim como eu. O prazo para visitar a instalação organizada pelo Museu Itamar Assumpção — organização virtual dedicada ao cantor — termina nesta terça, dia 25 de janeiro. Entre outros objetos, a mostra reúne fotografias, discos, figurinos. E há as orquídeas, flores que inspiraram o nome do grupo Orquídeas do Brasil. Com essa banda formada por nove mulheres, o cantor gravou a trilogia Bicho de 7 Cabeças, em 1993. Apesar de morar na zona leste, descobri faz pouco tempo que Itamar viveu no bairro da Penha por mais de trinta anos. Isso ocorreu em um show de sua filha Anelis Assumpção no Largo do Rosário, em frente à Igreja do Rosário dos Homens Pretos, ao lado do Centro Cultural da Penha. Foi no início de 2020, pouco antes da pandemia. Desde então, comecei a acompanhar mais sua história e a de Anelis. Sinto orgulho por esta família fazer parte da região em que nasci e cresci. E, além de dividir com Itamar o gosto pelas orquídeas, compartilho com Anelis o hábito da culinária e o desejo de que a memória das pessoas pretas seja garantida. (Por Livia Lima, do Nós, Mulheres da Periferia)
Quando você nasceu, seus pais já viviam na Penha. Como foi essa escolha de morar no bairro?
Sim, quando meu pai veio pra São Paulo se casar com minha mãe, ficar aqui, fazer moradia e tentar a vida na cidade, minha mãe já morava na Penha; uma parte da família da minha mãe já vivia no bairro.
Então, acho que foi um encontro muito positivo também, vindo de uma cidade do interior [Tietê], querendo encontrar dentro de São Paulo uma possibilidade de vida, tinha ali, no bairro da Penha muitos grupos de interesse, né? Era de periferia, era mais barato, era mais possível. Era um bairro majoritariamente preto naquela época, anos atrás, quase cinquenta, era muito negro, e tinha aí um clima muito interiorano. Ainda tem, né? Mas é um bairro já hoje bem mais globalizado, enfim. (…) Ele se apaixonou imediatamente pelo bairro, meu pai nunca quis morar em outro bairro de São Paulo que não fosse na Penha.
Que lembranças da infância você tem da Penha?
Eu saí de lá com 20 anos, mais ou menos, 18, 19, 20. E minha mãe ainda vive na casa em que eu nasci, então ainda me relaciono muito com o bairro. As minhas lembranças são maravilhosas, são lembranças de uma criança que viveu onde era possível brincar na rua, com outras crianças, sem perigos de atropelamento, pouco movimento. A rua em que a minha mãe mora é uma rua muito tranquila. Sempre teve muitas crianças. Eu fazia tudo andando. A gente nunca teve carro na casa dos meus pais. Então eu ia para escola, mercado, farmácia. No centro da Penha tinha a concentração de uns comércios maiores. E a gente fazia tudo caminhando. Conheci muito o bairro, muitas pessoas. Tenho a lembrança de um lugar seguro, possível. E talvez seja o melhor tipo de ambiente para criar crianças mesmo, né?
O quanto de mudança você percebe no bairro? Você ainda acha que ele é periférico?
Minha mãe mora na mesma casa. O que eu percebo de mudança são estruturais, econômicas, comércio. Quando eu era pequena não tinha metrô, shopping, supermercados grandes. Minha mãe tinha que fazer compras mensais, naquela época, por causa da inflação. Fazia uma grande compra por mês. Ela ia na Marginal, no Pós Mendonça, no Carrefour. E sempre houve um mercado pequeno na rua para demandas do dia a dia.
Olha, hoje eu não consigo pensar muito na Penha como um bairro periférico porque o [conceito de] centro expandido se ampliou demais, né?
Minha mãe mora a cinco minutos da estação do metrô, da casa da minha mãe se vê o metrô. A acessibilidade expandiu o que a gente entendia de centro da cidade e centro comercial. Hoje a Penha é um bairro que tem centro cultural, teatro, shopping, comércios grandes, bancos, correio, tudo. (…).
Ainda tem um recorte periférico pela localização, mas, do ponto de vista do pensamento socioeconômico, eu já não vejo isso. Na minha infância, era difícil chegar, era difícil sair
Você se considera uma mulher da periferia?
Eu acho que hoje eu não posso dizer que sou da periferia, porque não moro na periferia. Mas isso não significa que não possa voltar para qualquer lugar periférico da cidade de São Paulo ou do Brasil.
Ter nascido e sido criada na periferia traz pra mim valores que nunca sairão da minha construção, da minha personalidade, do meu caráter, da minha compreensão de mundo, da minha compreensão social
Quando você cresce num ambiente — periférico, central, pobre, rico, zona rural, urbana —, esses valores vão ser carregados para toda a vida. Então, em algum aspecto, eu não estou periférica. Talvez seja isso. Tenho valores que só a periferia pode dar. Para uma mulher, uma criança, uma adolescente.
Seu pai não nasceu em São Paulo (Itamar é de Tietê, a 140 quilômetros da capital paulista), mas faz parte da memória da cidade e compôs muitas músicas sobre ela. E você? O quanto a cidade te inspira?Muito. São Paulo me inspira muito, mas também me expulsa, me expurga, me cansa. É uma cidade muito difícil. E acho que a minha geração, ou até mesmo as minhas escolhas de localização, de trabalho, tenham me trazido [esse cansaço]… É uma exaustão maior em ser urbana. Ao passo que eu não consigo me imaginar sendo outra coisa, a não ser uma urbanóide.
São Paulo me inspira em tudo. Em crescimento, em possibilidade. É uma poesia caótica, é uma cidade complexa e fundamental pro Brasil
Acho que aqui 60% ou 70% dos meus amigos íntimos não são de São Paulo, isso diz muito, né? A cidade me inspira porque tenho culturas, religiões, línguas, costumes, tudo muito próximo de mim. Isso na verdade não me deixa acostumada, talvez me deixe instigada. É um breve momento de experiência de outros lugares que a gente tem através de pessoas, de migrantes, de imigrantes. Me estimula muito a mergulhar.
Qual a importância do Museu Itamar Assumpção?
É imensa, é fundamental, é mais do que importante. E infelizmente é um museu solitário quando se pensa num espaço temático, mas é um começo. Acredito que esteja aí um pequeno rompimento de barreiras para que a gente volte nossos olhares de cuidado e preservação da memória brasileira, depois de muita batalha dos movimentos todos para que essa invisibilidade do nosso passado fosse reconhecida e reparada. A importância do Itamar extrapola a própria vida e o próprio corpo. Joga luz sobre um assunto muito importante que é o apagamento das histórias negras no Brasil.
O principal objetivo é que isso perdure. Museus temáticos de toda ordem de cultura, de ciência, para a gente reconstruir a história e a memória da sociedade preta brasileira
O principal objetivo é que isso perdure, aumente, cresça, que a gente consiga ter museus de Elza Soares, Luís Melodia, Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola, Milton Nascimento. Museus temáticos de toda ordem de cultura, de ciência, para a gente reconstruir a história, a memória da música, da cultura e da construção da sociedade preta brasileira. Começamos!
Em dezembro de 2021, em frente ao Centro Cultural da Penha, foi inaugurada uma estátua em homenagem a Itamar Assumpção. Qual foi seu sentimento naquele dia e na abertura da exposição?
Os sentimentos são muito mistos, porque tem uma parte que é do corpo e da cabeça, que é operacional, funcional e prática no ponto de vista de produção e de execução da coisa. Outra parte, imensa, talvez seja a minha maior, é lidar emocionalmente com cada feito desses. É muito além, é uma coisa que atravessa minha vida, dos meus filhos, de todos os meus companheiros, companheiras.
É um rito. Algo que conecta quase que espiritualmente esses corpos todos, que se reúnem em prol de olhar para uma existência, para a história de uma pessoa, e, a partir disso, reconstruir trajetórias das suas próprias particularidades. Então é algo que mexe muito comigo, que dura muito mais do que o dia específico da inauguração, é elástico mesmo, o sentimento navega no tempo.
Como está o plano para que o Museu de Itamar tenha um espaço físico? Há uma previsão?
Assim como a gente já teve num passado não muito distante um plano de organizar a obra do Itamar e o acervo dele e transformar isso no que hoje a gente chama de museu, avançamos um pouco nos sonhos para tentar trazer isso para uma realidade física, mas ainda não temos previsão. É um projeto bem maior, precisa de aportes realmente comprometidos, né? Mas a gente não vai desistir!
Em 2021, você lançou o livro de receitas Taurina, ligado ao álbum musical de mesmo nome. Qual sua relação com a culinária? Ela é terapêutica para você?
Ela é terapêutica, sim. Gosto muito de cozinhar, de investigar a comida. É uma atividade que me organiza, que me ajuda a organizar ideia, pensamento, corpo, físico. Tenho muito prazer em cozinhar para as pessoas. E pra mim também, cozinho muito pra mim.
A cozinha é um lugar ancestral. Comida, alimento, plantio, terra. A culinária carrega muita poesia, história, beleza. Além de ser fundamental pra gente viver, né?
Quais são suas práticas de autocuidado? O que acha que nós, mulheres negras e periféricas, podemos fazer por nosso autocuidado neste 2022?
Acredito cada vez mais que é fundamental as mulheres, sobretudo as mulheres negras que estão na linha de frente de um pensamento revolucionário, de mudança, de comportamento macrossocial, cuidarem desse território que é nosso corpo. Em todos os aspectos.
As práticas variam muito para cada pessoa e cada encontro, mas fui ao longo desses anos encontrando as minhas necessidades. Acho que ainda é preciso encontrar mais, fazer mais por mim. É muito comum que a gente se abandone, é da condição feminina e da condição da mulher negra cuidar primeiro de fora, dos outros, então é uma prática mesmo, é um esforço, um exercício de primeiro conseguir impor limites para não ultrapassar o que a gente consegue fazer. E não tentar fazer mais do que se pode.
Faço terapia, faço análise há quase dez anos. Faço uma sauna no meu bairro. É um grande privilégio, porque é uma sauna familiar, uma das pouquíssimas em São Paulo e muito perto da minha casa. Às quintas-feiras, só podem ir mulheres. Todos os outros dias são para homens. A gente tenta mudar isso, mas infelizmente eles justificam que não tem adesão suficiente pra abrir mais dias para mulheres. É um ritual super importante pra mim. Ter um momento sozinha, um momento com essas mulheres mais velhas, trocar conhecimentos, observar. Um espaço seguro em relação ao meu corpo que me faz muito bem
Pratico yoga há muitos anos. Caminho. Agora na pandemia parei com academias e coisas que precisam de um espaço fechado, mas sempre que posso faço os meus próprios treinos. Para mim é muito importante atividade física. Tenho muita energia. Ajuda a organizar o corpo, a cabeça.
Acho que isso são coisas simples que fui encontrando pra mim. Cada um, cada pessoa tem o seu jeito. Mas a primeira coisa, a mais importante, talvez, seja perceber que a gente precisa olhar pra cuidar da gente, como a gente consegue. E isso não significa que a gente não precise também de cuidados de fora, né? Então também exercitar a prática do outro, de quem está perto de nós, para que o exercício de empatia nunca pare de acontecer. Assim como a gente cuida, a gente também precisa ser cuidada. E é importante estar perto de pessoas que prestam atenção nisso. Acho que é isso.
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