Foi no fim do século 19, quando Chiquinha Gonzaga escreveu os icônicos versos “ó abre alas, que eu quero passar”, que a marchinha se eternizou no carnaval brasileiro. Por causa da pandemia de covid-19, há dois anos os foliões não cantam esses e outros versos enquanto tomam as ruas com confete, serpentina e muito glitter. Em 2021, não houve blocos de rua, desfiles de escolas de samba e de frevo, bonecos de Olinda, nem trios elétricos. Contudo, o mesmo ano foi marcado pela tão esperada campanha de vacinação contra o coronavírus. Quando o Brasil encerrou o ano com mais de 67% da população com as doses da vacina em dia, a esperança por dias melhores cresceu, incluindo a expectativa pela volta do carnaval.
Infelizmente, também foi no fim de 2021 que o mundo foi assolado por uma nova preocupação: a variante Ômicron do coronavírus. Muito mais transmissível que as demais, ela foi responsável pela marca de mais de 298 mil novos casos em 24 horas no País. O número registrado no início de fevereiro é o maior desde que a doença chegou aqui. Ainda que as pessoas vacinadas tenham menos riscos de desenvolver o estágio mais grave de covid-19, o cenário alarmante fez com que 24 capitais e o Distrito Federal resolvessem cancelar ou adiar as celebrações do carnaval.
Isso impactou, inclusive, as principais festas do País, que atraem milhares de turistas brasileiros e estrangeiros, todos os anos. Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo, decidiram adiar os desfiles das escolas de samba para o feriado prolongado de Tiradentes, em 21 de abril. No entanto, os tradicionais blocos que lotam as ruas do Rio e o carnaval de rua de São Paulo, que vinha se popularizando nos últimos anos, não vão acontecer. Em Salvador, os trios elétricos precisarão ficar na garagem por mais um ano, já que por lá o carnaval foi cancelado e não foi proposta uma nova data. O estado de Pernambuco, responsável pelos famosos carnavais de Recife e Olinda, também cancelou suas festas. Acontecendo em abril ou não acontecendo mais, o fato é que os cancelamentos e adiamentos impactam diretamente no turismo, na renda de comerciantes e camelôs e, também, na economia do país.
A última vez em que os brasileiros puderam celebrar um dos principais movimentos culturais do país foi em fevereiro de 2020, quando o mundo já se preocupava com o coronavírus, mas a Organização Mundial da Saúde ainda não havia decretado a pandemia. Naquele ano ー que parece ter sido séculos atrás ー o carnaval movimentou, pelo menos, R$ 8 bilhões na economia do Brasil. De acordo com a Confederação Nacional do Comércio (CNC) esse foi um aumento de 48% em relação a 2019, e um recorde. Esse é o panorama mais amplo, e quando olhamos para a movimentação feita pelos principais carnavais do país, os números também são bem expressivos.
Segundo a Riotur, por exemplo, o carnaval carioca movimentou R$ 4 bilhões em 2020, com mais de 10 milhões de pessoas circulando pela cidade. Dessas, cerca de 2 milhões eram turistas, um crescimento de 31% em comparação ao mesmo período de 2019, o que levou a ocupação dos hotéis na cidade a quase 100%. Foram 50 dias de folia distribuídos nos blocos de rua, nos desfiles na Sapucaí, no carnaval de base da Intendente Magalhães e nos 77 palcos populares espalhados pela cidade.
Já a prefeitura de São Paulo afirmou que, em 2020, 15 milhões de pessoas lotaram o carnaval de rua da cidade, o que movimentou R$ 2,75 bilhões na economia do município. Os números foram 31% maiores que em 2019, mostrando que os blocos de rua de São Paulo vinham se popularizando. Já nos desfiles do Sambódromo do Anhembi, foram movimentados R$ 227 milhões, o que levou o total de movimentações a R$ 2,97 bilhões no carnaval paulista de 2020.
No tradicional carnaval de Salvador, 16,5 milhões de pessoas circularam pelas ruas em 2020, de acordo com a prefeitura da cidade. Com 86 mil turistas estrangeiros, a ocupação dos hotéis ficou na média de 95% e o número de voos foi 11% maior que no ano anterior. Com isso, foi movimentado R$ 1,8 bilhão na economia local. Já Pernambuco é um estado que conta com duas festas muito tradicionais: o carnaval de Recife recebeu 2 milhões de pessoas, 400 mil a mais que em 2019, e em Olinda, 3,6 milhões de foliões tomaram as ruas, com um aumento de 200 mil em relação ao ano anterior. A estimativa do governo do estado é de que as festas renderam mais de R$ 2 bilhões e superaram a movimentação de 2019 em quase 18%.
Olhando só para os números, já dá para ter noção dos impactos que dois anos sem carnaval geraram, né? Pois é, e isso porque nós falamos apenas do dinheiro movimentado. No entanto, é fundamental considerar que o carnaval também é um grande gerador de empregos, desde as costureiras e a equipe técnica que trabalha nos barracões das escolas de samba, passando pelos comerciantes e camelôs que trabalham nos blocos de rua, até as grandes empresas que patrocinam as festas.
Em São Paulo, por exemplo, 12 mil pessoas foram credenciadas para vender cervejas, águas e refrigerantes no carnaval de 2020, segundo a prefeitura. No Rio de Janeiro, a Federação das Associações de Ambulantes (Faaerj) alega que os cerca de 40 mil ambulantes, credenciados ou não, que trabalhariam no carnaval de rua da cidade em 2022 deixarão de movimentar R$ 20 milhões por dia, aproximadamente. São trabalhadores que perderam o acesso a essa renda no ano passado, e que vão perder novamente neste ano.
Pensando em amenizar os impactos, a prefeitura do Rio anunciou um auxílio de R$ 500 para os ambulantes que trabalham no carnaval de rua da cidade. Os 9.262 camelôs cadastrados no Carnaval de 2020, segundo a Riotur, tiveram direito ao auxílio a partir de uma solicitação pelo site carioca.rio. Ainda não foi divulgado o número daqueles que manifestaram interesse.
Em Olinda, a prefeitura anunciou um aporte de R$ 3 milhões para os trabalhadores do setor de eventos, incluindo entidades, artistas e ambulantes. Já em Recife, a prefeitura vai investir R$ 10 milhões para auxiliar as agremiações e atrações que participaram de edições anteriores do carnaval, além de trabalhadores individuais. Nos dois municípios, os projetos ainda precisam ser aprovados pelas respectivas câmaras de vereadores. Com esse panorama, dá para ter uma noção dos impactos que o cancelamento do carnaval traz não só para a economia, como também para a vida de muitos trabalhadores. Além disso, já são dois anos em que o papel social desse movimento cultural precisa enfrentar barreiras.
Carnaval não é só dinheiro — No início da pandemia, quando os cuidados com o vírus ainda estavam sendo estudados e definidos, os hospitais brasileiros enfrentaram uma escassez de equipamentos de proteção individual como máscaras, luvas e capotes. Foi nessa mesma época que escolas de samba do Rio de Janeiro cederam suas costureiras para a fabricação de máscaras e capotes, nos barracões da Cidade do Samba. As fantasias, alegorias e acabamentos de carros alegóricos foram substituídos por uma causa maior.
Um outro problema pandêmico foi a fome, que cresceu muito e atingiu 19 milhões de brasileiros, segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Mais uma vez, as entidades ligadas ao carnaval resolveram colocar a mão na massa. Escolas de samba do Rio e de São Paulo organizaram campanhas de distribuição de cestas básicas nas comunidades em que estão sediadas, que costumam ser locais de vulnerabilidade social. Em Pernambuco, agremiações de frevo organizaram lives solidárias, com o objetivo de arrecadar doações para os músicos que estavam enfrentando dificuldades financeiras durante o isolamento. Uma rápida pesquisa no Google mostra diversas ações desse tipo, vindo das mais variadas entidades carnavalescas.
Vale ressaltar que esse papel social do carnaval não foi algo que surgiu na pandemia. Muito antes disso, os trios elétricos de Salvador pediam doações de alimentos para os foliões que iam retirar o abadá, por exemplo. No Rio, escolas de samba oferecem diversos projetos para suas comunidades, como o Instituto Mangueira do Futuro, criado pela Estação Primeira de Mangueira. A organização oferece atividades de esporte, cursos profissionalizantes para abrir portas no mercado de trabalho e, assim, transformar a vida de crianças, jovens e adultos. A Portela também já ofereceu aulas de dança, lutas, atendimentos odontológicos, pré-vestibular social e muitos outros retornos para sua comunidade. Essas são apenas duas das muitas agremiações Brasil afora que exercem um papel social fundamental nas suas regiões e que precisaram intensificar essas ações durante a pandemia.
O fato é que, historicamente, o carnaval era uma festa de elite e, para que as classes populares pudessem participar, foi preciso resistir. Um artigo da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia indica que tudo começou no século 17, quando a colonização portuguesa trouxe o “entrudo” para o país, que consistia em brincadeiras e pegadinhas. A ideia era viver alguns dias extrapolando regras e limites da sociedade conservadora da época, antes do início da quaresma, que é um período de 40 dias em que os fiéis da Igreja Católica se dedicam ao jejum e a outras penitências.
A prática logo foi adotada pela população escravizada, até ser criminalizada no século 19. Foi nessa mesma época que a elite carioca criou o Congresso das Sumidades Carnavalescas e passou a desfilar pelas ruas, enquanto as práticas populares eram reprimidas. Daí para frente, as classes menos abastadas continuaram insistindo em formas de exercer sua folia, chegando ao século 20 com as marchinhas de carnaval, como a mencionada no início desse texto, com o primeiro samba, em 1910, com a criação das escolas de samba em 1920 e com a popularização de uma festa que hoje movimenta R$ 8 bilhões na economia brasileira.
Com isso, nós percebemos que o cenário pandêmico deixou o carnaval em um beco sem saída, já que o momento exige que a saúde das pessoas seja priorizada. No entanto, até as escolhas prudentes implicam em perdas, ou seja, cancelar ou adiar a festa significa gerar impactos nos diversos aspectos aqui mencionados. Os trabalhadores envolvidos em uma das principais manifestações culturais do país, as empresas patrocinadoras e até a própria economia brasileira: todos perdem. Cabe ao Estado reduzir os danos, principalmente para os trabalhadores, cujas perdas geram impactos muito profundos. Ao povo brasileiro, cabe respeitar as normas sanitárias e torcer para que os dois anos de pandemia tenham sido apenas mais um episódio de resistência do carnaval, característica recorrente em sua história.
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