Cientistas encontraram mais de 300 objetos em obra no bairro do Bixiga, em São Paulo; objetos podem ter pertencido a quilombolas
Com reportagem de Priscila Mengue, O Estado de S. Paulo
Louças, cerâmicas, vidros, solas de sapato e outros materiais estão entre os mais de 300 artefatos arqueológicos encontrados no sítio arqueológico identificado durante a obra da futura Estação 14 Bis, da Linha 6-Laranja. Um novo e inédito relatório aponta que parte dos itens remete possivelmente ao início do século 20, quando o Quilombo Saracura existia na região central da cidade de São Paulo, às margens do córrego de mesmo nome, nos primórdios do Bixiga.
“A profundidade dos vestígios parece aproximá-los dos períodos em que o Córrego Saracura ainda corria a céu aberto e aquilombados viviam à sua margem”, aponta o relatório. “Caso isto seja comprovado na escavação arqueológica planejada, esses materiais certamente serão remanescentes do Quilombo Saracura, cuja localização é historicamente comprovada.”
O movimento negro e moradores do bairro têm defendido que o acervo encontrado na obra dê origem a um memorial ao antigo quilombo, também chamado de “Pequena África”. Eles também reivindicam a mudança do nome da estação para “Saracura Vai-Vai”, a fim de marcar a história negra do Bixiga e do Vai-Vai, que teve a quadra cinquentenária demolida para implantação da linha de metrô.
O relatório parcial enviado pela A Lasca Arqueologia, responsável pelo acompanhamento da obra, ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) lista os 316 itens encontrados no sítio arqueológico Saracura/Vai-Vai, além de outros artefatos achados entre julho de 2021 e junho deste ano durante atividades de monitoramento e em poços-testes pontuais. Milhares de fragmentos e objetos foram encontrados em outros oito sítios arqueológicos identificados durante a implantação da linha, principalmente na zona oeste.
Uma prospecção arqueológica mais ampla é estimada para começar em setembro ou outubro, após obras de estruturas subterrâneas da estação que darão segurança para trabalhos de até três metros de profundidade. O início das escavações foi autorizado pelo Iphan logo após a identificação do sítio arqueológico, nas imediações da Avenida Nove de Julho e da Praça 14 Bis, o que interrompeu parte da obra no local.
“Os conjuntos materiais coletados representam um acervo diversificado em termos de materialidade e funcionalidade, mas que estão intimamente relacionados ao cotidiano das pessoas, agregando utensílios domésticos, medicamentos, restos de produção artesanal, equipamentos de trabalho e restos alimentares”, salienta o relatório.
Os artefatos são divididos em duas classificações. A de maior interesse arqueológico é a dos achados durante a descoberta do sítio arqueológico, em abril deste ano, porque estão em maior quantidade (mais de 300 fragmentos), concentração e profundidade (de dois a quatro metros), “como se fossem bolsões ou locais de descarte de longa duração”, segundo o relatório.
Já a outra classificação é relativa aos fragmentos coletados mais superficial e isoladamente, nas camadas de aterramento da área. Nesse caso, há a dificuldade da identificação de origem, pois podem ser provindos de ocupações urbanas mais recentes ou trazidos juntamente com o aterro.
A avaliação é que o sítio arqueológico seja uma área de descarte, o que é comum em levantamentos do tipo. “Interpreta-se que estes objetos tenham sido descartados em lixeiras próximas às antigas residências do quilombo, em um período em que a sua formação original já tivesse vivenciado modificações, com a ocupação se espalhando além do fundo de vale para as vertentes do córrego Saracura; assim, crescia a população do bairro, em muito formada pelos descendentes dos aquilombados”, pontua o relatório.
Há a possibilidade também que sejam encontrados materiais de outros momentos históricos, como do início das atividades do então cordão Vai-Vai na região e da formação do Quilombo Saracura, no século 19. “O resgate arqueológico do sítio Saracura/14 Bis permitirá compreender melhor os objetos que compõem a história deste local e as narrativas possíveis de serem escritas quanto à permanência e as modificações pelas quais passaram os antigos moradores do Quilombo da Saracura e suas formas de resistência e existência no território do Bixiga”, explica o relatório.
O relatório cita que o Quilombo Saracura se instalou às margens do córrego no fim do século 19, em uma área então periférica diante das dimensões paulistanas da época, concentradas no centro histórico. “Essa ocupação deve ter se expandido pela vertente do córrego e resistiu como permanência cultural até a década de 1970, quando grandes transformações urbanas geraram alterações significativas na topografia do terreno e soterramento do solo original desse assentamento”, diz.
“O resgate da área definida poderá trazer informações e materiais muito relevantes para a história de ocupação do Bixiga, a presença do Quilombo da Saracura e dos descendentes de seus antigos moradores que, de outra forma, não teriam visibilidade. Ao passo que uma porção do sítio será resgatada para gerar conhecimento sobre esse passado, outros testemunhos seguirão preservados sob as ruas que se expandem para o restante do Bixiga”, ressalta em outro trecho.
Além disso, o relatório avalia as características dos itens encontrados no sítio arqueológico. No caso dos vidros, por exemplo, a maioria é formada por frascos de medicamentos e garrafas de vinho e cerveja, em variações de verde, âmbar, azul e transparentes. Como todos os itens têm as bases e os gargalos marcados por linhas de produção, a equipe identificou que foram produzidas por máquinas automáticas, introduzidas no País no fim do século 19.
No caso das garrafas de medicamentos, estão três frascos de leite de magnésia Phillips, popular a partir dos anos 1940. Há também um vidro com a inscrição Vick, provavelmente de xaropes da marca produzidos a partir dos anos 1930, e outro com a inscrição da Wheaton, cujas embalagens eram utilizadas para comercializar penicilina a partir dos anos 1950.
Já as louças coletadas no sítio são de objetos domésticos, como pratos, xícaras, pires e tigelas, do tipo faiança fina e porcelana. Uma parte das peças estava com as logomarcas dos fabricantes, todos nacionais (como as Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo e Indústrias Francisco Pozzani). Há uma predominância de itens com pinturas à mão livre (especialmente com padrões de linhas nas bordas).
“A existência de logomarcas unicamente nacionais e de louças com padrões formais e decorativos mais simples pode apontar para um contexto de grupos sociais com menor poder aquisitivo, situação esta compatível com o contexto de ocupação do vale do córrego Saracura e do Bixiga como um todo no início do século 20”, salienta a avaliação.
Apenas dois fragmentos cerâmicos foram encontrados no sítio, uma possível borda de vaso para plantas e um item cônico “que provavelmente seria parte de algum objeto ornamental ou um suporte de vaso”. Como o relatório ressalta, o uso da cerâmica perdeu espaço com a industrialização e difusão das louças nacionais.
Também foram achados oito fragmentos de ossos, de aves, bovinos e um suíno (possivelmente), avaliados como provável descarte de alimentação humana. “Como são poucos fragmentos, ainda não foi possível diagnosticar e entender se há um tipo de animal mais consumido que outro ou mesmo se há uma maior porcentagem de partes consumidas. Assim, espera-se que o resgate arqueológico traga mais elementos sobre os tipos de alimento”, pontua o relatório.
Foram achados ainda solas e saltos de sapatos, cujo relatório associa a uma possível atividade de sapateiro no entorno. “Essa amostra nos indica a possibilidade de se encontrar no resgate arqueológico ainda outros elementos materiais que tragam a memória desses antigos artesãos e artesãs, que representam uma parcela da população com padrões de vida mais simples, inseridos nos circuitos de oficinas, ofícios e fábricas e que formaram a base do desenvolvimento econômico da capital paulista.”
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EM VÍDEO: Vestígios arqueológicos do Quilombo Saracura são investigados em obra da Linha 6-Laranja do Metrô