Não é a primeira vez que o livro “O avesso da pele” (Companhia das Letras), do autor Jeferson Tenório, se torna alvo de críticas e tentativas de censura. A obra, lançada em 2020 e vencedora do Prêmio Jabuti no ano seguinte, narra a história de Pedro, que após a triste morte de seu pai em uma abordagem policial, tenta costurar as memórias e traumas dessa família, na busca de reencontrar na ausência a imagem paterna do homem negro assassinado pelas mãos do Estado.
A questão é que recentemente a obra foi censurada e chegou a receber ordem de recolhimento em três estados do Brasil, sendo o caso mais conhecido o do Rio Grande do Sul. A obra foi censurada sob a justificativa de linguagem não apropriada para menores de 18 anos, além das descrição de relações sexuais dos personagens. O interessante é que qualquer leitor de “O avesso da pele” sabe que essas pontuações são usadas para retratar o racismo sofrido pelos protagonistas e apontam o problema dos estereótipos, como a hipersexualização de homens negros.
A história por trás da capa – Diferentemente dos episódios de censura, a obra de Jeferson Tenório é sutil e apresenta um mergulho íntimo na memória e construção da identidade de pessoas negras. Como é o caso da capa do livro, a pintura faz parte da coleção “Banhistas” pintada por Antonio Obá, e recebe o nome de “Trampolim”. Obá se inspirou em um episódio de 1964, em que os manifestantes entraram em uma piscina permitida apenas para pessoas brancas no Monson Motor Lodge, hotel da Flórida. Para barrar a manifestação, o dono do hotel jogou ácido na piscina, situação que ganhou notoriedade e virou símbolo de luta pelos direitos civis. Ainda falando sobre a capa, a pintura evidencia que o reflexo da janela nas costas do homem negro indica uma prisão, como se esse fosse o único destino.
Mas então surge uma pergunta: por que uma obra como essa pode ser alvo de censura? A resposta é mais simples do que você pode parecer: porque ela é real, mais real do que você pode imaginar. A grande ironia dessa situação é que o autor, apesar de ser carioca, muito cedo se mudou para o Rio Grande do Sul e lá viveu grande parte de sua vida. No mesmo estado, formou-se e se tornou Mestre em Literaturas Luso-africanas.
O autor deixa claro que essa não é uma obra sobre violência policial e racismo; esta é uma narrativa transgressora que dá às pessoas negras o direito de não serem reduzidas à sua pele, provando que há muito mais. Como o próprio livro menciona: “É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E, por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam nesse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. É nesse lugar que estão as afeições. São esses afetos que nos mantêm vivos.” (TENÓRIO, 2020, p. 61)
Os perigos dos estereótipos – O que o autor deixa claro é que as pessoas negras vivem uma vida dupla, sendo resumidas apenas à pele, como o corpo alvo do Estado, aquele que quase sempre é morto sem justificativa, enquanto o “avesso” é aquilo que merecemos ser, donos de nossos corpos, gerentes de nossos próprios caminhos, sonhando em não ter medo de sair na calada da noite para não mais voltar.
Ao se tornar alvo de ataques diretos, o que nos deve espantar não é uma censura, que já é de praxe, mas sim suas motivações. Assusta muito mais a esse grupo palavras de baixo calão do que a morte injusta de homens negros, ou o fato deles não têm direito à humanidade ou de serem os donos de seus próprios destinos.
Além de todos os problemas que envolvem a censura de uma obra literária, devemos considerar os interesses por trás disso. É possível retirar os exemplares das prateleiras, obras queimadas como já feitas anteriormente, mas não podem impedir que a realidade que bate na porta continue acontecendo todos os dias.
Em um país que mata uma pessoa negra a cada 23 minutos, é muito provável que ao terminar de ler este texto, um jovem negro já não esteja mais respirando. Há um movimento direto para fazer com que isso pare também?
Quando um autor como Jeferson Tenório imortaliza suas histórias, eles ganham um poder a mais, acessam escolas, periferias, mudam vidas para o bem, e disso, autoritarismo nenhum é capaz.
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Dayhara Martins é mestranda em estudos literários, trabalha como redatora e revisora. Fala de livros na internet há mais de 10 anos e fomenta discussões sobre a literatura de horror, perspectivas de raça, classe e gênero
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