Cobertos pela bolha de novas tecnologias, preços altos e transmissões ao vivo em redes sociais — que exigem conexões de rede rápidas e estáveis —, o mundo dos esportes eletrônicos, os eSports, não é de fácil acesso para quem vive nas periferias. Mas tem gente se mexendo para mudar esse cenário.
Mercado promissor A Newzoo, uma das mais importantes fontes de pesquisa no ramo do entretenimento eletrônico, mostrou que o setor de eSports teve faturamento de mais de US$ 950 milhões em 2019 e passou de US$ 1 bilhão em 2021
O mercado é promissor, mas a participação exige computadores de alta tecnologia, ferramentas e aptidão na produção de lives. E qualidade técnica do atleta, claro. O abismo entre as periferias brasileiras e o lugar ao sol nas plataformas especializadas e campeonatos é enorme, porque no dia a dia muitos jovens não chegam a ter nenhum contato com computador — quanto mais uma máquina sofisticada e a possibilidade de transformar diversão e talento em um trabalho reconhecido, com retorno financeiro.
Nas redes sociais Twitch, YouTube e Facebook estão cheios de canais para a produção de conteúdo. Muitos jogadores fazem transmissões ao vivo e engajam audiências numerosas
Iniciativas sociais trabalham para quebrar essas pedras e promover a inclusão digital. É o caso da Taça das Favelas, no Rio de Janeiro. O campeonato entre gamers favelados tem se consolidado como um grande alicerce da inserção de jovens das periferias no ramo dos jogos eletrônicos. A última edição do evento, em outubro de 2021 no Complexo do Alemão, reuniu cerca de 50 equipes.
Um dos organizadores da Taça é o streamer Alessandro Ninho, o Ninhozera. Ele integra a equipe profissional de esportes eletrônicos Real e-Sports. “Tinha até cara famosa do cenário do Free Fire lá e de organização profissional também. Foi bacana”, conta Ninhozera. Ele relata, porém, o desafio de promover a iniciativa diante da falta de patrocínio. “O dinheiro de inscrição não deu nem para pagar metade dos gastos. Se tivesse ajuda de patrocínio, seria melhor, mas nem isso. Fiz mesmo porque sempre tive vontade, mas ficaram umas coisas pendentes para pagar.”
No Brasil Clubes de futebol como Flamengo, Corinthians, Internacional e Santos já formam times e integram campeonatos. A movimentação atrai marcas do naipe de Coca-Cola, Kalunga, Red Bull e Netshoes. E tem a presença óbvia das empresas do ramo, a exemplo de Valve, Riot Games e Epic Games. Mas falta patrocínio para iniciativas sociais de inclusão digital
Centro de formação — Trilhando um caminho diferente, mas igualmente ligado à inclusão de jovens das favelas no mercado de eSports, o AfroGames funciona como centro de formação de atletas digitais. Além de uma escola de capacitação profissional, o projeto também promove desenvolvimento social que resulta na geração de renda para os alunos.
O AfroGames foi criado pelo grupo cultural AfroReggae em parceria com a Chantilly Produções. Fica na favela Vigário Geral, também no Rio de Janeiro. No espaço com computadores de configurações avançadas e equipamentos (teclados, mouses, headsets…) modernos, são oferecidas aulas de programação, inglês, LOL (League of Legends) e Fortnite, um dos principais jogos no mundo.
Em 2021, o projeto atendeu mais de 100 jovens da periferia. Para 2022, a expectativa é alcançar 170. Todos os alunos fazem aulas de inglês na unidade.
O time AFG Sports, formado no AfroGames, é especializado em LOL. Os seis jogadores passam a maior parte do tempo no centro cultural. Lá eles treinam, dão aulas e ajudam no trabalho de outros integrantes do projeto.
Inserção social — “A ideia surgiu numa reunião em que estavam eu, José Júnior e Ricardo Chantilly, que é nosso sócio”, conta William Reis, coordenador cultural do AfroReggae. Ricardo já foi empresário de bandas como Jota Quest e O Rappa. “Ele mostrou um campeonato de games que tinha ido nos Estados Unidos e um aqui na Arena Palmeiras [em São Paulo]. Nosso primeiro olhar, meu e do Júnior, foi que não tinha nenhuma pessoa preta jogando, né? Nem jogando, nem na plateia e nem trabalhando. Então resolvemos fazer isso dentro da favela. Vamos criar o primeiro centro de esporte numa favela. Foi aí que o sonho começou”, diz. A reflexão de William traz a realidade: o mercado de tecnologia ainda se comporta de forma homogênea e tem poucas pessoas negras na vitrine.
Suporte A rede WakandaStreamers, fundada em 2018, dá apoio à comunidade preta. Ela divulga e compartilha talentos de negras e negros no cenário dos jogos eletrônicos
William afirma que uma das principais características do AfroGames é a preocupação em inserir jovens que nunca teriam uma oportunidade de entrar no mundo dos games, com computadores de última geração. Para ele, ver alunos formados e progredindo dá uma sensação de dever cumprido. “É um sentimento de liberdade, de igualdade e é uma sensação de um novo mundo, que a gente sempre sonhou e que a oportunidade tem que ser feita”, diz.
Como fazer parte — Para participar do AfroGames, é preciso preencher uma ficha online no site ou na própria sede na favela do Vigário Geral. Tem de ser morador da comunidade ou do entorno. O projeto tem uma cota de participação de 30% das vagas para meninas e pessoas com deficiência. Quando a reserva não é atingida, as vagas retornam para o público geral.