O principal efeito da virtualização da vida durante a pandemia é que as carências afetivas foram acentuadas, diz o psicólogo Alexandre Coimbra Amaral
Entrevista a Rita Lisauskas para o blog Ser Mãe é Padecer na Internet. Acesse a íntegra neste link
Depois de um ano e meio de isolamento social, home office, aulas online e muitas perdas, a conta está chegando ou já chegou: mulheres-mães mais ansiosas, crianças que só assistem às aulas se a câmera estiver desligada e casais que tiveram que se reinventar para aguentar excesso de convivência, divisão de tarefas e a sobrecarga de trabalho. Para fazer um balanço dessas novas formas de estar em casa, na vida, a jornalista e escritora Rita Lisauskas conversou com o psicólogo Alexandre Coimbra Amaral, mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Chile e um dos especialistas do Programa Encontro com Fátima Bernardes, da Rede Globo.
HOME OFFICE
O trabalho está ocupando muito mais espaço e invadiu a casa, não o contrário. Na cabeça das crianças demorou muito para que isso fosse minimamente equacionado – quando meu pai ou minha mãe tem disponibilidade para mim? Quando nesse espaço da casa eu tenho meu pai e não o profissional, minha mãe e não a profissional? O principal impacto da virtualização da vida na pandemia é que se acentuaram as carências afetivas. O toque, o encontro presencial, o abraço, tudo foi interrompido e adiado.
MÃE, ME AJUDA?
Antes a criança podia brincar com o amigo. Às vezes era uma brincadeira que tinha até luta, abraço, mas o corpo estava em movimento. A criança precisa de tempos em tempos receber esse toque, esse afeto, então ela entra onde está acontecendo o trabalho do pai e da mãe. E qual dos dois é interrompido quando ela tem um aperreio qualquer? A mãe. E não é por que a mãe é mais dotada de competências, e sim por que culturalmente já está posto e a criança sabe que a mãe resolve a questão dela mais rapidamente.
MÃE-MULHER-TRABALHADORA
Isso gera nas mulheres maior medo do desemprego, medo de não ser reconhecida como uma pessoa que sabe fazer essa fronteira entre o pessoal e o profissional, ela tem medo do que o chefe possa achar dela quando o filho entra por trás da câmera. E quando o filho entra por trás da câmera do pai e ele resolve a questão ‘ganha biscoito’, reconhecimento. É ‘paizão’, ‘nossa, que maravilhoso’, todo mundo ri. Mas quando isso acontece com a mãe, é algo que gera muita ansiedade.
TEM JEITO?
Eu acho que isso se resolve culturalmente quando a gente começa a trabalhar dentro das empresas a normalização dessa ideia de que agora, nesse momento da vida, enquanto houver pandemia ou enquanto houver trabalho virtualizado a infância vai entrar na sala, os filhos vão entrar na sala, vão ‘dar oi’ para a câmera, a mãe vai precisar interromper, o pai vai precisar interromper. Então a gente está criando uma cultura de flexibilização desse tipo de coisa. O momento é esse.
A ESCOLA TÁ ON
A escola online é um paliativo bem difícil e a gente ainda não sabe qual o tipo de prejuízo cognitivo que essa geração vai ter. O conhecimento se constrói com o corpo todo, faz parte do processo de você adquirir conhecimento ver a professora, escutar a voz dela, sentir o cheiro, ter raiva dela, poder virar para trás e falar com o colega ‘nossa, ela é chata, né, que aula chata!’, sair, conversar com os outros, abraçar o colega na hora do recreio – isso tudo constrói o processo de aprendizagem.
A CONTA CHEGOU
As crianças estão cada vez mais com a câmera fechada. O que essa câmera fechada está falando? Ela está falando ‘eu não aguento mais’; ela está falando ‘desse jeito eu não quero aprender’; pode estar falando de um processo mais depressivo, de uma certa desistência de lidar e de se vincular àquele grupo naquele momento desse jeito.
PROFESSORES
A gente tem também professores mais ansiosos, eles estão vivendo uma experiência muito difícil, porque precisaram se reinventar em velocidade desumana, precisaram do dia para a noite aprender a lidar com programas com os quais eles não lidavam, um jeito de abordar o processo de aprendizagem que eles não tinham formação e não precisavam ter, não teriam que necessariamente ter tido. E eles também têm os filhos deles em casa. Todo mundo está exausto, professor, aluno e pais.
ANSIEDADES
Crianças com sobrepeso, comendo mais, se movimentando menos, projetando ansiedade em jogo eletrônico, então tem muito mais uso de tela e durante a aula e a criança deixa a tela desligada e liga a tela do jogo – o pai e a mãe estão lá no home office deles e não estão vendo que isso está acontecendo. Toda uma nova problemática está surgindo: é o tempo de exposição ao jogo, o vício em jogo, isso é tudo coisa que a gente vai ter que tratar não só agora, mas também no pós-pandemia.
SOLUÇÕES?
A gente está construindo, aos poucos, saídas para isso. Exemplo: aulas presenciais com os protocolos possíveis.
ERRAMOS
Uma sociedade que abre primeiro o shopping center e o campo de futebol para depois abrir escola não entendeu nada sobre prioridades. Precisava ter protegido as crianças em primeiríssimo lugar; primeira coisa que tem de reabrir é a escola, proteger a necessidade de desenvolvimento de crianças e adolescentes.
BRIGAS NUNCA MAIS (OU SIM)
A gente já teve a principal onda de separações. O que está acontecendo agora é um novo formato de relacionamento, porque todo esse efeito da construção de uma vida muito privada dentro da tela a gente já vivia antes. A virtualização chama a pessoa para um mundo muito privado, muito individualizado – eu com a minha tela, eu com a minha vida.
ALTERNATIVAS
Então os casais estão procurando construir momentos em que saem, desliga todo mundo, agora não vai ter nenhuma tela, nem televisão, nem Netflix nem nada. Mas perceba que isso é um evento, porque o normal e esperado no meio da pandemia é a presença online e isso é o avesso do casamento, que é ao mesmo tempo o lugar do descanso do online, mas é também onde eu projeto as minhas angústias.
O que a gente tem conversado mais com os casais é que não levem tão a ferro e a fogo essa explosão que acontece no ambiente do casamento porque isso pode ser o resultado de uma tensão vivida individualmente lá no trabalho virtualizado
E diante de todas as ansiedades e inseguranças da pandemia – a minha mãe tá na outra casa, eu tenho lutos que eu estou acumulando, estou perdendo amigos para a Covid, o número de mortos não para de crescer, eu ainda não fui vacinado – então tudo isso pressiona as pessoas e se eu estou só com o meu cônjuge em algum momento, aquela louça que não foi limpa vira palco para um grito que estava precisando sair, é um grito que não é só por causa da louça suja, é o grito por todas essas dores que eu vivo.
TEM CHÃO PELA FRENTE
Temos que investir naquilo que é belo para cada pessoa. O contrário da exaustão não é descanso, é beleza. Aquilo que é belo para você, que te faz se sentir leve, com a sensação de que o tempo não passa. É a música? Aumente a quantidade de música na sua vida se é isso que te faz sentir bem. É contato com as pessoas? Insista no contato com as pessoas, ainda que virtualmente. Mas desliga a tela, conversa com ela só na voz. Vá levar o pão que você faz para o seu amigo, deixa um bilhete, uma carta. Se o que é belo para você é a natureza, vá para a natureza. Mas não desista do belo, como uma coisa diária na sua vida, porque essa beleza é o oxigênio sutil da vida que contribui para a gente se sentir bem e para a gente ter paz de espírito para seguir adiante.
A pandemia retirou muitas dessas belezas da nossa vida, algumas vão continuar indisponíveis enquanto a pandemia estiver acontecendo e eu tiver uma conduta responsável com a minha e com a saúde coletiva, mas outras que fazem parte de sua alma e que vão fazer você se sentir bem têm que se manter presentes